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Crimes de ódio contra praticantes de Umbanda e Candomblé no Rio Janeiro representam 90% dos casos do disque-denúncia estadual; no país, as denúncias de discriminação por motivo religioso cresceram 4960% em 5 anos

Reportagem
1 de novembro de 2017
14:12
Este artigo tem mais de 6 ano

Mãe Merinha foi bem rápida, amarrou um pano branco na roupa e colocou alguns colares fios-de-conta coloridos no pescoço. ‘‘O mais triste disso tudo é saber que eles não param’’, disse, enquanto prendia um tecido também branco na cabeça. Estava pronta, com sua vestimenta de mãe-de-santo. Sinalizou que poderia começar a entrevista e se apresentou, ‘‘sou Mãe Merinha de Oxum, fui iniciada no Candomblé há 36 anos, sou filha de Mima de Oxossi, do Ilê Axé Obá Ketu’’. Há um ano e meio, Rosimere Lucia dos Santos abriu um terreiro de Candomblé em Belford Roxo, município do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, onde também começou um trabalho social com crianças da região. No dia 27 de setembro, quarta-feira, completou 51 anos e, naquele mesmo dia, seu terreiro foi invadido e incendiado.

Os vizinhos, quando perceberam as chamas, chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto, para ajudar a apagar o fogo. O incêndio foi controlado a tempo de não afetar a edificação principal, mas, no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que colocaram fogo bem na casa do meio, onde ficavam os donativos, roupas de santo e os orixás. Os criminosos furtaram também uma TV, celular e rádio. O Registro de Ocorrência foi feito uma semana depois, já na segunda tentativa: ‘‘A delegacia estava muito cheia, fiquei umas três horas lá, tava muito enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando força, aí retornei na quinta-feira’’.

Mãe Merinha segura uma das fotos que sobrou do incêndio (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

Queimaram também livros sobre religiões de matriz africana e as fotos da história da família no Candomblé.  ‘‘O que mais me entristece é o material de trabalho e as fotografias. Eu tenho toda uma história de santo, de quando era dirigido por minha mãe’’. Mãe Merinha é descendente de negros e indígenas, e a religião veio pela avó materna que foi para o Rio de Janeiro fugindo do marido violento, no Espírito Santo. Lavadeira, a avó conseguiu comprar um terreno em Belford Roxo e destinou parte para o orixá da filha. ‘Tinha até algumas fotos da minha mãe com trouxa na cabeça quando elas chegaram no município de Belford Roxo’’, relembra. ‘‘Levei tudo que eu tinha no decorrer desses anos para esse local, é toda uma história de vida do sagrado’’.

Mãe Merinha é uma das vítimas mais recentes da violência contra adeptos das religiões de matriz africana no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com os dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), das 52 denúncias de intolerância religiosa ao Ceplir – de dezembro de 2016 a agosto de 2017-,  34 foram de pessoas do Candomblé, Umbanda e outras denominações de religiões de matriz africana no Estado do Rio.

Em cinco anos, as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram 4960%. Foram de 15, em 2011, para 759, em 2016, de acordo com os dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram candomblecistas (9,09%), 74 eram umbandistas (9,75%) e 33 são descritas como “religião de matriz africana” (4,35%), totalizando 23,19%.

Segundo relatório da Pew Foundation, o país deixou de ser um dos países mais populosos com menor taxa de Hostilidade Social por motivações religiosas, em 2007, para um dos países com alta taxa em 2014, passando da 2ª posição para a 9ª neste período.

Em agosto e setembro deste ano, uma nova onda de ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense comprovou que os crimes de ódio por motivo religioso estão crescendo no estado que tem, pela primeira vez, um bispo evangélico governando a sua capital – em janeiro, Marcelo Crivella (PRB), bispo de Igreja Universal do Reino de Deus, assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro.

Em resposta à violência, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDHMI) lançou o Disque Combate ao Preconceito para facilitar as denúncias.

Nos meses de agosto e outubro foram feitas 43 denúncias: uma de um espírita kardecista, uma de um evangélico, dois islâmicos e 39 umbandistas e candomblecistas, representando 90% do total. Foram seis tipos de violações identificadas, entre eles invasão/atentado a instituições religiosas (11), discriminação/difamação (10), agressão física (6), incitação ao ódio (6), agressão verbal (6), ameaça (4).

Inquisição do tráfico na Baixada

Dentre as denúncias contra religiosos de matriz africana, 12 ocorreram na Baixada Fluminense. A região reúne 13 municípios do Rio de Janeiro e abriga ao menos 274 terreiros, do total de 847 no Estado, de acordo com a pesquisa Mapeamento das Casas de Religiões de Matrizes Africanas, realizada pela PUC-Rio com o apoio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.

A SEDHMI recebeu quatro denúncias de ataques a terreiros realizados por traficantes de agosto a outubro, três delas de ocorrências na Baixada Fluminense – duas em Nova Iguaçu e uma em Itaguaí. Segundo a secretaria, as quatro vítimas informaram que por ordem da facção criminosa é proibida a prática de religiões de matriz africana na área dominada pela facção. Todas as pessoas que denunciam casos de intolerância religiosa são orientadas a fazer o registro na delegacia da região, mas algumas vítimas não o fazem por medo.

Em setembro, o terreiro da mãe de santo Carmen de Oxum foi atacado em Nova Iguaçu. O traficante, que ainda registrou o crime com a câmera de um celular, dá ordens para destruir os objetos sacralizados: ‘‘quebra tudo, apaga as velas, pelo sangue de Jesus tem poder… Todo mal tem que ser desfeito em nome de Jesus’’. Segundo o diretor-Geral da Polícia da Baixada Fluminense, Sérgio Caldas, o caso está sendo investigado  pela 58ª DP e já foram identificados, como executores, dois traficantes do Terceiro Comando Puro, facção criminosa conhecida por ameaçar candomblecistas e umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma outra comunidade para pressionar os terreiros de candomblé’’, disse Caldas à Pública, acrescentando que as condições “não são favoráveis” para a investigação. “Quando ocorre em comunidade conflagrada, a vítima fica com medo de se expor’’.

Os indiciados deste caso serão penalizados pela Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei Caó’’, que determina a punição para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como crime   inafiançável e imprescritível. A pena é de dois a cinco anos de reclusão.

O babalaô Ivanir dos Santos, fundador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e porta-voz da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, diz que as primeiras ações de destruição de terreiros por traficantes aconteceram na década de 1990, no Morro do Urubu, em Pilares, Zona Norte do Rio. Depois, outros casos ocorreram no Morro do Dendê (localizado na Ilha do Governador), no Lins de Vasconcelos e na Cidade Alta. “É um fenômeno compreensível. Toda religião que cresce vai influenciar algumas esferas sociais’’, diz. Ivanir acredita que a presença de igrejas evangélicas nos presídios do Rio é um fator de influência para o surgimento do que chama de “tráfico evangelizado’’. ‘‘O cara tá lá preso, vira evangélico e vai sair por bom comportamento, isso diminui a pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem todo mundo muda de vida”, diz.

As igrejas evangélicas devem se tornar ainda mais presentes nos presídios fluminenses. Em fevereiro, a Igreja Universal do Reino de Deus firmou acordo com o Governo do Estado para a construção de templos em unidades penitenciárias, custeados pela instituição religiosa. O acordo permite que a Universal construa ou reforme templos ecumênicos nas 51 unidades prisionais do Estado, dependendo de autorização do diretor da unidade. Até o momento, graças ao convênio, 15 templos foram inaugurados ou reformados, nos Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água Santa.

A Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Sistema Prisional e Direitos Humanos do Rio de Janeiro visitou as unidades prisionais onde foram construídos os templos religiosos para apurar a validade do acordo. Segundo o promotor de Justiça Murilo Nunes de Bustamante, os espaços não deveriam ser vinculados à religião específica, mas o padrão arquitetônico encontrado por eles se assemelha ao usado pela Igreja Universal. ‘‘Apesar da previsão de ser ecumênico de ter o livre uso pra qualquer um, os próprios internos só admitiriam que algumas religiões realizarem seus cultos no local’’. A investigação da Promotoria ainda não foi concluída. “Os indicativos são no sentido da identidade arquitetônica dos espaços, o que será debatido com as igrejas atuantes no sistema prisional’’, esclareceu.

Em resposta à Pública, a Igreja Universal do Reino de Deus informou que o programa social Universal nos Presídios (UNP) atende 80% da população carcerária do Brasil, aproximadamente 500 mil pessoas, do total de 622 mil detentos, segundo o Infopen de 2014,‘‘oferecendo cursos e apoio aos detentos e seus familiares, realizando um trabalho de ressocialização que é reconhecido pelas autoridades em todos os estados da Federação, inclusive no estado do Rio de Janeiro’’.

Oito homicídios por intolerância religiosa

Os dados disponíveis no Relatório de Intolerância e Violência Religiosa, da Secretaria Especial de Direitos Humanos,detalha o que ativistas pela liberdade religiosa chamam de ‘‘Guerra Santa’’. O Relatório mostra que, entre 2011 e 2015, 27% das denúncias feitas nas ouvidorias do país eram de pessoas da religião de matrizes africana, 16% de evangélicos, 8% de católicos e a 7% de espíritas. Em relação à religião dos agressores, informada pela vítima, as informações indicam que 17% eram evangélicos. Católicos aparecem em segunda posição, porém muito distantes, com 3%, seguidos de Testemunhas de Jeová  (1%) e Espíritas(1%), Matriz Africana (1%). Em 73% dos casos não foram registradas informações sobre a religião do agressor.

Também foram identificados no Relatório oito homicídios por motivo religioso, segundo investigações da polícia civil ou do Ministério Público. Quatro mortes envolveram lideranças de candomblé, em Londrina (PR) e em Manaus (AM), e quatro foram mortes de uma mesma família de evangélicos, em Itapecerica da Serra (SP).  Todos os assassinatos foram realizados por uso de facas, e os agressores e vítimas eram próximos.

O professor Jayro de Jesus, coordenador da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada, explica que os neopentecostais entendem que a fé traz saúde, bem estar e prosperidade material. Já as doenças, desemprego e pobreza resultam do ‘‘mal’’ e de uma vida em pecado. ‘‘É o mal que prejudica a vida alheia. E o mal é tipificado nas religiões afro’’, explica. ‘‘Os neopentecostais, hoje, contam com a ajuda da própria população que encontra justificativa para acabar com o mal que é o seu vizinho, o seu entorno.’’

Jayro, figura histórica na luta contra a violência às religiões de matriz africana, coordenou nos anos 80 o Projeto Tradição dos Orixás, que visitava os terreiros na Baixada para ouvir relatos de intolerância, e encaminhava para as delegacias. ‘Eram 20 jovens que saiam por toda a Baixada. Levantamos 3 mil terreiros com queixa de invasão, xingamentos, apedrejamentos, surras de bíblia’’, relembra. “A perseguição vinha essencialmente da Igreja Universal’’, diz.

Os relatos ao grupo foram reunidos no Dossiê ‘‘A Guerra Santa Fabricada’’, primeiro entregue ao Governo Federal sobre o assunto, protocolado na Procuradoria-Geral da República em 1989. Mas nada foi feito, garante Uilian Portella, advogado do grupo. ‘‘O dossiê denunciou reiteradas atitudes agressivas das igrejas evangélicas neopentecostais, notadamente a denominada Universal do Reino de Deus… Os adeptos dos cultos de Matriz Africana vinham sendo apedrejados, espancados e surrados com Bíblias ‘para expulsar capetas’”.

Em 2015, as emissoras de televisão Rede Record e a Rede Mulher (comprada pela Record), de Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal, foram condenadas pela Justiça Federal a exibir quatro programas de televisão como direito de resposta às religiões de matriz africana por ofensas contra elas no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão de Descarrego”.

Procurada pela reportagem, a Universal afirmou que a acusação de que seus membros perseguiam outros cultos na década de 80 é “mentirosa”. “A Igreja Universal do Reino de Deus defende, de modo intransigente, a liberdade de pensamento, de crença e de culto, conforme assegurado por nossa Constituição Federal”. A Igreja diz que prega o contrário. “Orientamos nossos adeptos a respeitarem as convicções das outras pessoas, pois são exatamente os bispos, pastores e milhões de simpatizantes da Universal as maiores vítimas do preconceito religioso no Brasil”, afirmou, por nota.

‘‘É como se tivessem arrancado um filho”

Às 22h do dia 4 de outubro deste ano, Mãe Vivian de Souza estava em casa, em Nova Sepetiba, quando recebeu a ligação de um vizinho do seu terreiro, em Seropédica, na Baixada. Por telefone, ele disse que entraram na casa dela e, até aquela hora, muitas imagens e objetos já deveriam estar quebrados. O vizinho repassou a ameaça de que se ela não retirasse os pertences o mais rápido possível, iriam destruir tudo. Mãe Vivian entrou em desespero. Sua casa fica a uma hora de distância de carro.

Há quase dois anos, Mãe Vivian se mudou com a família para Nova Sepetiba e transformou a sua casa em Seropédica em Casa de Candomblé. Não visitava o terreiro com regularidade, mas podia ficar uma ali uma semana inteira ou apenas um fim de semana, ‘‘o tempo que a obrigação religiosa exigir’’. Quando chegou à casa, próximo da meia noite, viu o portão arrombado, o Orixá Bará no chão, os Exus quebrados. Conseguiu um caminhão para tirar o que sobrou. No dia seguinte, alugou uma casa em Sepetiba para começar a construção de um novo espaço dedicado aos orixás. Para o anterior, não quer voltar mais: ‘‘É como se tivessem arrancado um filho meu’’. Além dos orixás, destruíram a própria estrutura da casa e outros objetos, ‘‘coisa que pra gente tem muito valor. Um búzio, uma moeda pra gente vale, pra outras pessoas talvez não, mas é muito ruim’’, contou.

Mãe Vivian mudou o terreiro para uma casa mais isolada em Sepetiba (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

A casa nova é menor; objetos simbólicos foram armazenados em um quarto, e a outra parte em uma sala, com os atabaques e colchões que conseguiu levar. ‘‘Não dá pra entender tanto ódio. Parece que eu tô no tempo dos meus antepassados, da gente ter que se esconder na mata, como meus avós fizeram pra continuar cultuando a nossa religião. Eu tô acuada, eles estão nos acuando cada vez mais.’’

Mãe Vivian foi até a Delegacia em Sepetiba para fazer a denúncia, mas foi orientada a fazer o Registro de Ocorrência online ou ir à delegacia de Seropédica. “A forma que eles agem é como se você fosse culpado por aquilo que tá acontecendo, ‘porque a senhora não tava lá na hora?’. Não sou eu que tenho que saber quem foi.’’  Para ela, não há interesse da polícia em realizar uma investigação de fato.

Com a crise, o fim do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa

Mãe Vivian buscou ajuda no Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) que, de 2012 até este ano, atendeu às vítimas de intolerância no Estado Rio com acompanhamento psicológico, jurídico e assistência social.

Porém, Flávia Pinto, que era diretora da instituição até esta semana, explicou à Pública que o Centro deixou de receber recursos do Governo do Estado em 2016.  ‘‘Com a crise do Estado, o Ceplir ficou sucateado. Conseguimos recurso com a Fundação Cultural Palmares [do Governo Federal] e colocamos o Ceplir pra funcionar por mais um ano na UFF [Universidade Federal Fluminense], mas esse recurso acabou’’, informou. Estamos conscientizando as pessoas de que intolerância religiosa é crime. A política de liberdade religiosa ainda é embrionária no país. As pessoas ainda não têm o entendimento de que ser discriminado pela sua religiosidade é crime’’.

O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, rebate as críticas. Segundo ele, a Secretaria estadual de Proteção e Apoio à Mulher e ao Idoso passou a ser Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) e, com a mudança, a secretaria vai incorporar os técnicos do Ceplir  já em novembro ‘‘pra que seja uma estrutura permanente, consolidada e que não dependa de recurso de terceiros’’. Mesmo assim, a Ceplir não terá atendimento em novembro, mês da Consciência Negra, segundo Flávia. Ela agora vai trabalhar na Secretaria Municipal de Direitos Humanos da capital.   

Em agosto, o secretário anunciou que o Estado vai criar uma delegacia policial especializada em combate a crimes raciais e delitos de intolerância, a DECRADI, com um grupo capacitado para realizar as investigações e os atendimentos com as vítimas de crimes de ódio.

Mãe Vivian na porta da casa em Sepetiba com parte da estrutura da casa de Seropédica em mãos (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

Ainda há muito o que melhorar no atendimento, comenta Flávia Pinto: “Os casos de intolerância ainda são interpretados pela polícia como brigas de vizinhos, aí a pessoa não tem atendimento correto e os dados não são gerados’’.

Sobre o problema orçamentário, o secretário acredita que a ação pode desafogar as delegacias regionais que vão poder encaminhar para a especializada a investigação. ‘‘Estamos falando de uma estrutura mais enxuta, a Secretaria de Direitos Humanos disponibilizaria os técnicos de psicossocial pra fazer o atendimento e ajudar nesse acolhimento das vítimas’’.

‘‘Infelizmente, estamos vivendo um outro momento que traficantes estão perseguindo os terreiros, a lógica agora é uma lógica territorial por conta desses traficantes’’, diz o secretário. A violência por parte dos traficantes estimula o aumento do número de casos não notificados e dificulta o trabalho da polícia. ‘‘No caso da mãe Carmen, foram quase 10 traficantes, segundo o relato dela. A gente até acompanhou ela até a delegacia, mas ela não quis assinar o depoimento por receio”, conta. Ele diz ainda que há uma sensação de impunidade por esses casos não serem tratados com seriedade e notificados como intolerância religiosa.

O Delegado Henrique Pessoa, da 151º DP de Nova Friburgo, coordenou o Núcleo de Combate a Intolerância da Polícia Civil que centralizava as informações de ocorrências recebidas pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “Esse assessoramento nas delegacias. A nossa função era devolver à polícia a consciência da relevância da investigação. O problema não pode ser enfrentado de uma forma banal. Mas, lamentavelmente, a polícia trabalha em condições precárias, de forma inadequada.’’ O núcleo foi extinto em 2012, durante a reestruturação da polícia civil, no governo de Sérgio Cabral (PMDB).

Mãe Elaine e Pai Márcio

Mãe Elaine Dias Pereira, mãe Elaine de Oxalá, mora em Nova Iguaçu há 30 anos – e há 30 anos sofre perseguição pela sua religião. Ela conta que logo que começou a casa em Santa Rita, bairro de Nova Iguaçu, já colocaram fogo nas colunas da casa. Ainda hoje, jogam constantemente pedras nas telhas. Até dezembro do ano passado, ela nunca tinha feito uma denúncia ou registro de ocorrência na delegacia. Mas, daquela vez, explodiram uma bomba no relógio de luz do terreiro enquanto ocorria uma cerimônia religiosa. ‘‘Tinha muita gente, muitos filhos aqui na casa, tinha criança, mulher grávida, e a explosão foi assustadora, naquele momento da explosão a gente não tinha noção do que estava acontecendo’’.

Ela foi à delegacia da Posse (58º) para relatar o caso. ‘‘Para minha surpresa, fui muito bem atendida e foi registrado como intolerância religiosa, foi uma vitória, cheguei aqui feliz porque tinha conseguido fazer isso’’. Um inspetor de polícia visitou a casa no dia seguinte. ‘‘O caso não foi adiante, não houve uma investigação até o fim’’, conta. Depois do episódio, ela resolveu colocar duas câmeras na frente do terreiro, o que inibiu as agressões.

Pai Márcio Virginio também precisou colocar uma câmera no quintal de seu terreiro, na Penha, Zona Norte no Rio de Janeiro, para identificar os autores das pedradas e restos de lixo que são frequentemente jogados na Casa de Candomblé. A Casa está aberta há três anos e, a partir do segundo ano, os ataques começaram em dias certos, segunda-feira e sábado – sempre em momentos de cerimônia. ‘‘As pedras vêm do prédio do lado, sendo que a câmera não é tão boa, então vou gastar mais dinheiro pra comprar uma câmera melhor.’’ Além de quebrar partes do telhado, os agressores já quebraram uma imagem do Caboclo, orixá cultuado na casa. ‘‘Quando a gente vê uma imagem de santo quebrada eu fico pra baixo, porque é a casa do nosso sagrado.’’

Foi necessário colocar lona na parte aberta do quintal para que as pessoas não fossem atingidas pelas pedras no momento das cerimônias religiosas. ‘‘Minha casa tem muitos idosos, gente que vem com cadeira de roda. A pessoa já chega com medo’’.

Pai Márcio foi até a delegacia quando as agressões começaram a ficar mais frequentes. “Na primeira vez não abriram o boletim de ocorrência. Só na segunda vez’’. Ele conta que foi pelo menos 20 vezes à delegacia para fazer mais denúncias. “Não fizeram nada”, diz.

Os defensores da liberdade religiosa veem uma ligação entre a inação da polícia e o preconceito. Ivanir dos Santos argumenta que um passo ainda pendente seria a instituição do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, segundo a Lei 10639. A culpa é, também, do desconhecimento.  “Não adianta colocar a conta só nos neopentecostais porque não são só eles. Para a sociedade brasileira nós somos feiticeiros, macumbeiros e do mal”, resume.

No dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal autorizou ensino religioso confessional nas escolas públicas – ou seja, as aulas podem seguir os ensinos de religiões específicas. Para Ivanir dos Santos, o efeito da ação será aumentar a discriminação e a perseguição às religiões afro-brasileiras. “Isso é referendar o papel da igreja como elemento do estado, isso é igualzinho na Colônia e no Império’’, comenta. Jayro concorda que o ensino religioso reforça a dualidade entre o bem e mal. ‘‘As igrejas se sentem detentoras do bem, não só da alma, mas da vida social. Então o ensino religioso nas escolas é um incentivo a essa dualidade’’, comenta.

Sem conhecer a religião, é difícil à sociedade entender a seriedade desses ataques. Na visão de mundo africana, o assentamento dos orixás é uma espécie de ‘‘extensão do seu eu’’, da própria existência, explica o professor Jayro. “A violência é muito mais vigorosa do que a gente imagina’’. Desrespeitar as lideranças religiosas e os símbolos representativos de matriz africana, diz ele, é entendido como uma forma de expulsão. Para muitas pessoas, depois da destruição, é necessário se reconstruir em outro espaço físico.

Para se reconstruir, Mãe Merinha contou com um mutirão de voluntários a limpar, fisicamente, a sua casa varrida pelas chamas. Agora, prepara o ritual de limpeza religiosa, com direito a preces para os Pretos Velhos. “Passamos por um momento de grande intolerância religiosa em nosso país, que a cada dia se agrava mais. Não sei se é de conhecimento de todos, mas o nosso espaço infelizmente também veio a fazer parte dessa estatística de ódio”, escreveu aos seus filhos.

Mãe Merinha olha as roupas de santo queimadas (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)

Um passado que volta

Em vários momentos da história brasileira, as religiões de matriz africana, cuja essência teológica e filosófica é baseada nos valores civilizatórios negroafricanos, sofreram repressão e foram tratadas como práticas primitivas e profanas. Até a Constituição Imperial, promulgada em 1824, que concedeu certa liberdade de culto aos não-católicos, foram alvo de perseguição do estado e consideradas criminosas. Neste período, os negros-africanos escravizados só podiam cultuar as divindades secretamente. A liberdade religiosa só passou a ser considerada um direito fundamental com a Constituição de 1988.

‘‘Hoje, o que o neopentecostalismo faz com os terreiros, a Igreja Católica fez na Colônia e no Império. A destruição dos terreiros tem essa lógica, de um passado que se presentifica’’, comenta o professor Jayro de Jesus.

Os mais de 130 anos de história do terreiro Ilè Așé Opò Afonjá, o mais antigo do Rio de Janeiro, revelam a resistência do Candomblé. Dois anos antes da abolição da escravatura, em 1886, mãe Eugênia Ana dos Santos, a mãe Aninha, se mudou de Salvador para a região portuária e se instalou na Pedra do Sal. Após a abolição, a repressão continuava, e polícia fazia prisões asseguradas pela Lei da Vadiagem.

A Lei punia a manifestações negro-africanas, como a capoeira, o samba e as práticas religiosas. ‘‘Hoje, eles vão mudando de lugar para preservar esse culto, assim como lá dentro da senzala’’, explica Sandra Brandão, 47 anos, pedagoga e Presidente da Sociedade Civil do Ilè Așé Opò Afonjá do Rio – nome que significa Casa de Força Sustentada por Xangô.

A Casa passou por diversos locais antes de se instalar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, para fugir da intolerância religiosa. ‘‘O objetivo era se afastar dos grandes centros’’, conta a neta de Edgard Brandão, que veio de Salvador com mãe Aninha. ‘‘E mesmo nesse endereço que estamos hoje, também existia essa intolerância. Tenho uma tia biológica de 89 anos que conta que quando criança, as crianças brincavam na frente da casa pra fazer barulho pro candomblé poder tocar atrás pra polícia não coibisse essa manifestação.’’ As prevenções continuam. Sandra diz que principalmente os mais idosos estão amedrontados – e que o medo já causou um efeito psicológico. “Quando a gente faz as práticas religiosas, a gente fala, olha o portão, tem que estar fechado’’, conta.

A maioria das Casas de Candomblé antigas no Rio de Janeiro continuam na Baixada Fluminense, como o Terreiro Alákétú e a Casa Branca. Mãe Beata de Iemanjá seguiu o mesmo caminho: foi de Salvador para o Rio em 1969 e fundou em 1985 o terreiro Ilê Omiojuarô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Reconhecida pela militância em diversas causas, entre elas a liberdade religiosa, Mãe Beata morreu em maio deste ano em Nova Iguaçu, onde ‘‘encontrou seus laços, suas redes bem tecidas de apoio da população negra de terreiro’’, conta Pai Adailton, filho biológico de Mãe Beata de Iemanjá.  

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