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Falta de mobilidade urbana em Brasília, agravada por redução de frota durante a pandemia, expõe ao contágio população que mora fora do Plano Piloto; densidade demográfica em Ceilândia é de 129 habitantes por hectare, enquanto no Plano Piloto cai para 20

Reportagem
10 de setembro de 2020
11:59
Este artigo tem mais de 4 ano

Apesar de os primeiros casos de Covid-19 na capital federal terem sido confirmados no Plano Piloto, hoje o epicentro encontra-se na periferia. A região administrativa com maior número de casos e de mortes é Ceilândia, que fica, em média, a 30 quilômetros do centro de Brasília. Uma das causas apontadas por especialistas para o aumento do número de infectados na região é o transporte público. “Já está mais do que discutido que a transmissão da Covid-19 ocorre por aglomeração, que é exatamente o que transporte coletivo faz”, afirma a infectologista Eliana Bicudo. 

Não por acaso, mais da metade da população (51,7%) de Ceilândia, incluindo Sol Nascente e Pôr do Sol, usa transporte público para trabalhar, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal (PDAD/DF-2018). “Enquanto a classe média se desloca de carro sozinha e com máscara, a população de trabalhadores da periferia simplesmente tem que se submeter à jornada no transporte público para o Plano Piloto”, explica Breitner Luiz Tavares, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de saúde coletiva. 

“Imagina o porteiro de um prédio que mora em Santa Maria e vem todos os dias trabalhar na Asa Sul. Ele tem contato com prestadores de serviços e com moradores diariamente, aí eventualmente acaba contraindo o vírus, volta para sua cidade e dissemina a doença entre a comunidade”, exemplifica. 

Especialistas concordam que outro fator decisivo para a propagação do vírus na periferia é o alto índice populacional. Ceilândia, por exemplo, tem 129 habitantes por hectare, enquanto o Plano Piloto tem 20. Isso de acordo com a pesquisa Densidades Urbanas nas Regiões Administrativas, de 2018. “Na periferia são comuns residências multifamiliares. Ou seja, muitas famílias ocupando o mesmo imóvel. Então a aglomeração é quase inevitável”, afirma Tavares. 

Mestra e doutora em infectologia pela UnB, Eliana Bicudo tem observado um padrão entre pacientes que moram na periferia. “Normalmente, alguém pega a doença e todos da casa, em um intervalo de sete a dez dias, também adquirem”, afirma. “No Plano Piloto, há casos em que a filha pegou, ficou trancada no quarto e, no máximo, mais um integrante da família adquiriu, ou até nenhum”, compara. “Isso é questão de estrutura física e do número de habitantes por metro quadrado.”

Mobilidade na pandemia

Em março, após o decreto que determinou o fechamento do comércio, as empresas de transporte público de Brasília reduziram a frota por causa da diminuição de passageiros. Para Tavares, essa foi uma atitude irresponsável, pois contribuiu para aglomeração nos ônibus que ainda estavam operando. “Outros países, como Cingapura, adotaram um limite máximo de pessoas por ônibus. À medida que mais pessoas iam trabalhar, eles iam aumentando a frota”, compara.

Dois meses depois, em maio, embora a pandemia não estivesse controlada, o comércio reabriu e, de acordo com a Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob), as companhias de ônibus passaram a operar com 100% da frota. Além disso, os ônibus escolares foram remanejados para ajudar outras linhas nos horários de pico, pois as aulas estavam suspensas.

Em nota, a Semob afirmou: “As operadoras estão higienizando as partes internas dos ônibus, tais como corrimãos, barras de apoio de sustentação, roletas, apoios de porta, antes e após cada viagem. Também foi determinada a realização das viagens com as janelas abertas”. Contudo, isso não é o que os passageiros acompanham no dia a dia. 

Pastor Willy Gonzales Taco, mestre em transportes urbanos pela UnB e doutor em engenharia de transportes pela USP, acredita que o principal problema é a falta de fiscalização. “Determinar limpeza e segurança é uma coisa. Agora, a viabilidade disso para as empresas é outro assunto. A implementação dessas medidas na rodoviária, por exemplo, foi um pouco lenta. Não teve muito encaminhamento.”

O pastor Willy Gonzales Taco, mestre em transportes urbanos pela UnB, atribui o problema da mobilidade urbana à falta de fiscalização

Alessandra Borges Silva, de 48 anos, faturista de convênio, conhece o transporte público de Brasília há 46 anos. Para ela, nem a redução de passageiros durante a pandemia melhorou a qualidade dos serviços de ônibus no DF. “Ainda há muita poluição sonora, lotação e pouca frequência”, reclama. Ela faz o possível para evitar esse tipo de transporte na pandemia, mas, como trabalha todos os dias longe de casa, essa não é uma opção. “Não me sinto segura. Os ônibus estão lotados, dependendo da linha e do horário, todas as cadeiras estão ocupadas e ainda tem pessoas em pé. Às vezes, a janela de ventilação do teto do ônibus não pode abrir porque está quebrada”, relata. A faturista, que trabalha no Sudoeste e mora em Samambaia, leva aproximadamente uma hora no trajeto. Às vezes, há demanda profissional externa e Alessandra tem que pegar outras linhas para chegar ao destino. 

Thiago Leonardo Distretti, de 18 anos, jovem-aprendiz, mora em Ceilândia e usa transporte público para sacar o benefício social do governo e visitar a família, que mora em Samambaia. Para ele, a limpeza dos ônibus é precária. “Sinceramente, eu acho que só são higienizados quando saem do terminal, ou seja, uma vez por dia. Isso não é o ideal”, lamenta. Ele testou positivo para a Covid-19 e, desde então, já não tem tanto medo de usar transporte público, pois acredita que as chances de se reinfectar são mínimas. 

Alessandra Borges Silva e Thiago Leonardo Distretti utilizam o transporte público em Brasília e relataram à reportagem a precariedade dos ônibus

Problema antigo

Os problemas do transporte público da capital federal sempre existiram. A pandemia apenas evidenciou a segregação socioespacial promovida pelo arranjo da cidade e pela mobilidade ineficiente. “A pandemia só reforçou o quadro de desigualdade e de um desenvolvimento urbano centrado na ideia do carro, que acaba gerando uma série de impactos ambientais do ponto de vista da perda da qualidade de vida e de exposição ao risco”, explica o pesquisador Breitner Tavares. 

Capital planejada e ícone da arquitetura mundial, Brasília foi construída por “candangos” que dormiam nas cidades-satélites e se deslocavam diariamente para o centro. Hoje, 60 anos depois, essa realidade permanece. Esses locais ainda abrigam a maior parte dos trabalhadores. São 33 Regiões Administrativas (RAs), onde vivem 2,57 milhões de pessoas, que ficam em média a 30 quilômetros do Plano Piloto, a região que mais emprega no DF.

Uma distância que nem seria tão complicada para os trabalhadores se a maior cidade construída no século 20 não fosse também uma das dez piores do mundo em sistemas de transporte, segundo o instituto de pesquisa americano Expert Market. O que, para os trabalhadores, significa muito tempo perdido no deslocamento diário. 

De acordo com o estudo “Como anda meu ônibus”, elaborado pelo Instituto de Fiscalização e Controle (IFC) em parceria com o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), entre agosto de 2019 e janeiro de 2020 a maior parte dos entrevistados espera de 30 minutos a uma hora para embarcar no ônibus e avalia como ruim ou péssimo o tempo de espera e a pontualidade do veículo para chegar na parada. Quanto ao tempo de viagem, as avaliações com maior percentual de respostas foram “regular” e “péssimo”. Um problema que só se agravou com a pandemia. 

“Morar a 30 ou 40 quilômetros de distância não é tão problemático, porque você gastaria 15 minutos em um sistema eficiente. A questão fundamental é o tempo de deslocamento”, explica o doutor em sociologia urbana Benny Schvarsberg. Para ele, é necessário ajustar a quantidade de frota nos horários de pico, que são os mais importantes. “Nesse período até existe uma maior disponibilidade da frota, mas é pequena em razão da demanda. Então, é ineficaz.”

De acordo com os dados esquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal, 51,7% de moradores da Ceilândia utilizam o transporte público para trabalhar

Ineficiência é o problema

De 12 entrevistados pela reportagem, nove reclamam da baixa frequência das linhas de ônibus. “O ônibus que eu pego para chegar à aula de manhã passa às 6h20 e só passa outro umas cinco ou seis horas depois”, reclama a estudante de publicidade da UnB Rebecca Alves Cavalcanti, de 19 anos. Ela gastava aproximadamente quatro horas no caminho de ida e volta para a universidade antes da suspensão das atividades presenciais da UnB. 

Além da frequência insuficiente dos ônibus, as cidades-satélites não possuem muitas linhas internas, o que dificulta o transporte de ônibus ou metrô para o Plano Piloto. Em outras palavras, há pouca capilaridade, o que prejudica ainda mais a mobilidade. Afinal, como chegar ao metrô se você mora distante e não tem carro? Sem um transporte público que o leve até lá, fica inviável.

“Pensando no corpo humano, temos veias pequenas que permitem a circulação do sangue na nossa mão e permitem que ela se movimente. Se elas não estivessem funcionando, perderíamos a função do braço. Para ter um braço forte, preciso de dedos que possam pegar as coisas. Os dedos são como os transportes dentro das RAs, que pegam as pessoas para trabalharem e, à noite, fazem o percurso de retorno para casa. Isso é capilaridade”, define o Gonzales Taco. 

Os moradores que se deslocam todos os dias da periferia para o centro de Brasília enfrentam outro problema – a falta de segurança e infraestrutura. O estudo “Como anda meu ônibus” ilustra a insatisfação dos passageiros. O item mais mal avaliado do questionário foi a lotação dos veículos – 67,23% dos entrevistados avaliaram a quantidade de pessoas no transporte público como “péssima”. Quanto à temperatura e ventilação nos ônibus, 34,34% classificaram como “péssima” e 29,30%, como “ruim”.

“Penso que pagamos passagens caras e temos serviço ruim: carros sujos e superlotados. Tenho que me espremer entre os usuários se quiser voltar para casa depois de árduo dia de trabalho. Já fiz várias reclamações em vários órgãos em vão. Total desrespeito ao usuário”, escreveu um morador de Planaltina no questionário.

A avaliação da infraestrutura nas paradas de ônibus não foi muito diferente. A maioria dos entrevistados classificou a iluminação pública, a limpeza nas paradas e a proteção ao sol e à chuva como “péssimas”. A falta de segurança também é um problema. Não é raro ver notícias sobre casos de violência e assalto nos pontos de ônibus do DF – fora tantos outros que provavelmente acontecem e não repercutem nos jornais.

De acordo com o coordenador do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transportes (Ceftru), Gonzales Taco, a segurança pública urbana faz parte do sistema de transporte público, mas, no DF, ambos andam descolados. “À medida em que eu me sinto seguro para estar na parada, eu vou esperar. Mas, se eu não tenho segurança, vou procurar aplicativo”, explica. “Nas regiões mais periféricas, a infraestrutura para o transporte público é deficitária – parada sem iluminação, sem espaço adequado para esperar o veículo, sem baia para o ônibus parar e sem segurança para os passageiros esperarem”, acrescenta.

A falta de capilaridade também agrava a insegurança. “As pessoas que moram longe usam muito o transporte clandestino porque não têm opção. Ano passado, houve muitas mortes por causa disso. Precisamos de capilaridade no início e no fim da viagem”, diz.

Especialistas apontam relação entre o aumento de casos de Covid-19 em Brasília com aglomeração no transporte público

Descentralizar oportunidades de trabalho

Uma das soluções apontadas por especialistas, a médio e longo prazo, seria dispersar a oferta de trabalho por todo o DF. “Precisamos de mudanças urbanísticas descentralizando oportunidades. O governo tem que espalhar a oferta de empregos, serviços e comércio. Menos de 10% da população mora na área central”, argumenta Schvarsberg, doutor em sociologia urbana.

O professor de saúde coletiva da UnB Breitner Tavares concorda. “Por enquanto, o Plano Piloto recebe, por dia, em torno de 1 milhão de pessoas. É como um coração que não aguenta mais”, pontua. “Existe algo bastante equivocado do ponto de vista dessa mobilidade, que já era um problema anterior à Covid. A pandemia mostrou o quanto esse tipo de lógica de deslocamento e oferta de trabalho é errôneo.”

Além disso, entender que existem diferentes tipos de transporte para curta, média e longa distância é fundamental na compreensão das outras soluções. O metrô, por exemplo, é usado para trajetos maiores. Contudo, no DF, ele só atende algumas cidades. As outras têm apenas ônibus para todos os tipos de deslocamento. Isso pode dificultar a mobilidade.

A bicicleta é um veículo que, além de promover saúde, facilita deslocamentos de curta distância. Por isso, cidades como Londres, Paris e Barcelona possuem bicicletas públicas integradas aos outros sistemas de transporte. Isso significa que o cidadão paga por uma tarifa e pode usar metrô, ônibus e bicicleta. É a chamada integração intermodal.

“No pós-pandemia, teremos que evitar transportes que promovem aglomeração. Por isso, é necessária a integração entre bicicleta, caminhada e ônibus ou metrô, para que os usuários passem o menor tempo possível em locais fechados”, analisa Schvarsberg. 

Benny Schvarsberg, doutor em sociologia, reforça a importância da integração intermodal

Ademais, oferecer mais tipos de bilhetes pode diminuir o pico de alguns horários. Gonzales Taco explica que uma tarifa mais barata para quem usar o transporte público fora do horário de pico pode distribuir a quantidade de passageiros em determinados momentos e diminuir a lotação. “No mínimo, podemos trabalhar com seis tipos de bilhetes para otimizar o sistema”, sugere. “Precisamos que se entenda que o transporte público é integrado, no qual bilhete, segurança, infraestrutura e toda a parte de atratividade para os usuários são integrados”, acrescenta.

“Enfrentar a cultura do carro também é uma forma de melhorar o transporte público brasiliense. É preciso incentivar a população a usar modais públicos em vez de automóveis”, defende a arquiteta Marilene Menezes. Schvarsberg concorda e argumenta que é necessário punir os transportes individuais. “É cada vez mais inviável. Carros causam muito trânsito. Então, em vez de ter cinco faixas para carros e apenas uma para ônibus, o certo seria ter uma só para os automóveis individuais e todo o resto para ônibus e bicicleta. Além disso, o preço elevado do estacionamento é uma boa política, pois os donos desses veículos terão que pensar duas vezes antes de ir para o trabalho em um transporte individual.”

A Zona Verde é sustentável?

Em julho, a Semob apresentou o projeto da Zona Verde, que prevê a cobrança de estacionamento em áreas públicas. Se aprovado, serão criadas quatro áreas com diferentes tarifas. Embora essa seja uma forma de punir os usuários de automóveis, como defendem os especialistas, a forma como a proposta foi apresentada para consulta pública não foi adequada, de acordo com o coordenador da Ceftru, Gonzales Taco. “Primeiro é necessário ampliar o sistema e dar as condições necessárias para poder atender quem vai deixar o carro em casa para usar ônibus”, explica. Além disso, o mestre em transportes urbanos questiona para onde vai o dinheiro. “O recurso arrecadado vai para um fundo de previdência do Governo do Distrito Federal (GDF). Ao menos pareceu isso na audiência.”

O projeto da Zona Verde está em consulta pública desde 25 de agosto e vai até 25 de setembro. Está marcada uma audiência para 17 deste mês. 

Infografista:

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Mobilidade, realizado pela Agência Pública e o Instituto Clima e Sociedade. A 11ª edição do concurso selecionou estudantes para investigar a mobilidade urbana nas capitais brasileiras.

Júlio Minasi/Secom UnB
Arquivo pessoal
Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Eduardo Rossetti

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