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Esse prédio é testemunha da história do branco e do índio no Brasil. O governo do Rio quer derrubá-lo para abrir mais um acesso ao Maracanã. Os índios criaram um centro cultural e querem uma universidade indígena aqui

Reportagem
15 de janeiro de 2013
15:46
Este artigo tem mais de 11 ano

13 de novembro de 2012. Uma decisão tomada pela desembargadora federal Maria Helena Cisne, presidente do Tribunal Federal Regional da 2ª região (TRF-2), colocou na trilha das escavadeiras o casarão imperial doado pelo duque de Saxe para ser o primeiro instituto de pesquisa de cultura indígena que viria a abrigar o primeiro órgão de proteção indígena em 1910, fundado pelo Marechal Rondon.

Naquele dia a juíza cassou duas liminares concedidas pela Justiça Federal, após ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria Pública da União (DPU). Uma liminar impedia a demolição do prédio que abriga a aldeia, enquanto a outra garantia a permanência dos indígenas no local.

Vizinho ao Maracanã, o prédio que Darcy Ribeiro transformou em Museu do Índio em 1953 foi abandonado em 1977, doado à Conab – Companhia Nacional de Abastecimento – em 1984, e ocupado em 2006 pelos indígenas conscientes de seu valor histórico, que ali criaram um centro cultural. Uma disputa jurídica se arrasta desde então e o governo do Rio comprou o prédio quase arruinado pelo descaso público para demoli-lo. Em visita oficial no final de 2011, a Comissão Especial de Patrimônio Cultural sinalizou o estado precário do prédio. “O local ficou completamente abandonado nas duas últimas décadas. Nele habitavam mendigos e infratores”.

Hoje, sessenta índios, de 17 etnias diferentes, protegem a construção, permanecendo ali.

A cassação das liminares alertou os índios e os movimentos populares que acompanham de perto os prejuízos públicos trazidos pelos preparativos da Copa. A resistência começou assim que a juíza cassou as liminares, no ano passado: “Viemos para cá em peso para que a gente não fosse pego de surpresa. E essa ocupação contou com pessoas de tudo quanto é tipo: estudantes, pessoas dos movimentos sociais, cidadãos comuns, tivemos apoio também do pessoal aqui da região do Maracanã, que defende os espaços públicos do entorno do estádio. Não dá para você apontar exatamente um grupo, porque há um rodízio muito grande”, explica Paula Kossatz, que integra o Comitê Popular Rio Copa & Olimpíadas.

Os fatos demonstram que os movimentos sociais tomaram a decisão certa. Nessa segunda-feira, depois da tensão do fim de semana quando o Batalhão de Choque cercou o prédio no sábado cedo com policiais armados com sprays de pimenta, cassetetes e bombas de gás, o defensor público federal Daniel Macedo conseguiu restabelecer o direito de permanência dos índigenas e a preservação do prédio, mas a disputa jurídica continua.

De acordo com Macedo, o prédio foi vendido pela União ao governo do estado do Rio em setembro de 2012, por R$ 60 milhões. “Foi mais ou menos na época em que agendamos a ação de imissão da posse [para os índios]”, conta.

Segundo o jornal O Globo desta terça-feira, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, concedeu licença para o governo estadual demolir o imóvel. A medida vai contra um parecer do dia 12 de dezembro do ano passado feito pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural (CMPC) que, por unanimidade, se colocou contrário à demolição do prédio. A Prefeitura alega que o CMPC é apenas um órgão consultivo, mas um decreto de 2001 exige que o Conselho aprove a demolição de qualquer edifício construído antes de 1937.  A Agência Estado noticiou também nesta terça-feira que o Ministério Público Federal (MPF) entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 2ª região para impedir que o prédio seja demolido.

O QUE VAI SER CONSTRUÍDO? NADA, RESPONDE O GOVERNO DO RIO

Mas o que exatamente será feito ali?

“Nada. Ali vai ser um espaço justamente para a circulação rápida de pessoas e veículos, para auxiliar no enorme fluxo que a Copa trará para o entorno do estádio”, afirma, José Carlos Pelosi, assessor de imprensa da Empresa de Obras Públicas (Emop) do estado do Rio de Janeiro, órgão responsável pela demolição.

O projeto da reforma do Maracanã para adequá-lo às ditas exigências da FIFA para a Copa do Mundo de 2014 há muito tempo causa polêmica entre setores da sociedade carioca e brasileira. Não apenas pela descaracterização do adorado “Maraca”, mas também pela mudança em seu entorno, cercado de equipamentos públicos: o ginásio do Maracanãzinho, o estádio de atletismo Célio de Barros, o parque aquático Júlio Delamare, a Escola Municipal Friedenreich, além do prédio do ex-Museu do Índio. O projeto de reforma do estádio, adotado pelo governo do Rio, prevê a demolição desses equipamentos todos, com exceção do Maracanãzinho, e um posterior repasse do estádio à iniciativa privada.

A FIFA pulou fora da enrascada e diz que não tem nada a ver com isso. Procurada pela Defensoria Pública da União, a entidade divulgou uma nota, assinada pelo secretário-geral Jerôme Walcke, afirmando que não exigia a demolição do prédio. O argumento foi repetido à Pública através de email enviado por sua assessoria de imprensa:  “A FIFA nunca fez tal pedido para demolir o Museu do Índio no Rio de Janeiro. Nem a FIFA e nem o Comitê Organizador Local são proprietários do estádio nem construtores responsáveis pelas instalações e, portanto, cabe aos respectivos donos decidir o que será melhor para a sua região, equipe ou comunidade”.

DENTRO DA OCUPAÇÃO, ARTE E SOLIDARIEDADE

Atividades culturais envolvendo música, teatro, contação de histórias e outras manifestações artísticas davam o tom da ocupação e da estratégia de resistência a uma possível (e temida) ação policial para reintegração de posse desde novembro. “A gente faz a resistência por meio de manifestações culturais, sempre de forma pacífica. Todo sábado tem atividade cultural aqui, por exemplo”, conta Paula Kossatz, que também integrou a ocupação do local durante esse período.

Os movimentos sociais estavam preparados para enfrentar problemas no fim de semana passado, mas acabaram sendo surpreendidos com a chegada da polícia no sábado, explica Paula. “Durante a semana a gente teve a informação de que iriam demolir o Célio de Barros, que fica aqui do lado da Aldeia, no domingo. E que iriam ter trezentos policiais do Batalhão de Choque fechando aqui a Radial Oeste [avenida que dá acesso ao Maracanã]. Então já vivia essa expectativa, a gente estava com medo, alerta, e divulgando bastante isso pelo Facebook, que é onde as nossas informações estão circulando”, diz Paula Kossatz.

A ideia era fazer uma manifestação cultural de grandes proporções já na noite do sábado. A Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST) transferiu uma convenção marcada para o dia 13 de janeiro para a Aldeia Maracanã, levando mais 200 pessoas em solidariedade ao movimento local. Artistas, como os músicos Chacal, Pedro Rocha e Ava Rocha, tinham confirmado a presença no domingo de manhã. Mas às sete horas da manhã do sábado duas viaturas policiais já ocupavam a Avenida Radial Oeste e, cerca de duas horas mais tarde, oito carros de polícia se encontravam em frente à Aldeia Maracanã. “Foi quando a gente começou a botar no Facebook, chamar todo mundo, fazer um alarde, ligar para jornal e foi aquela repercussão toda”, lembra Paula.

A estratégia não decepcionou e além dos artistas citados, a divulgação dos fatos trouxe advogados, deputados, vereadores, diplomatas, e até o secretário do Cônsul da França ao local. Dois operários que trabalhavam nas obras do Maracanã se solidarizaram à causa dos índios e pularam o muro  que separa o canteiro de obras para fazer quórum no movimento – homenageados pelos índioos, José Antônio dos Santos Cezar, de 47 anos, e Francisco de Souza Batista, de 33, foram demitidos na segunda-feira.

As armas e a postura do Batalhão de Choque foram interpretadas pelos ocupantes da Aldeia como estratégia: os policiais estariam aguardando qualquer agressão mínima das pessoas que lá estavam para então justificar uma invasão. “Eu ouvi, isso eu posso te falar porque eu ouvi, eles falando: ‘Que eles taquem a primeira pedra’. Eles estavam esperando que a gente tacasse uma bolinha de papel para que se justificasse a entrada deles”, garante Paula Kossatz.

NINGUÉM VIU CADASTRO NEM ASSISTENTE SOCIAL, MAS O CHEFE…

A única manifestação oficial do governo estadual sobre essa ação policial foi uma nota oficial emitida pela assessoria de comunicação da Emop (Empresa de Obras Públicas, vinculada ao governo do estado do Rio de Janeiro): “Representantes do Governo do Estado (Emop e Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos) estiveram no sábado (12/1), no local, para atualizar os contatos com as pessoas que estão no prédio de forma que, durante a semana, seja finalizado o cadastro social e haja remoção das pessoas e, logo que possível, a demolição do prédio.”

Procurada, a assessoria da Emop afirmou que a presença da polícia se deu para garantir a segurança dos funcionários da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos que realizavam o cadastro social e as negociações com as pessoas que ocupam a Aldeia Maracanã.

“Não veio ninguém aqui com uniforme para fazer cadastro nenhum. Se houve esse cadastro, a gente não viu”, afirmam o cacique Carlos Tukano e os organizadores do Comitê Popular. O cacique, aliás, não estava na Aldeia desde o início do dia. Quando ele chegou, foi se inteirar da situação com o comandante da operação, o tenente Melo, do Batalhão de Choque, que disse que a polícia esperava uma ordem judicial para agir e não usaria de violência .

Depois de entrar para conversar com os índios, Tukano conta que saiu novamente do prédio e viu dois homens conversando com o tenente Melo. Um deles estava vestindo um colete daqueles típicos de obras da construção civil. E o outro era um senhor grisalho, que usava óculos e vestia um traje social esportivo, com roupas aparentemente caras. Ressabiado, Tukano se aproximou do grupo acompanhado de Paula Kossatz e tentou conversar com o senhor bem vestido. Mas ele se esquivou cercado por cinco policiais, perseguido por jornalistas e curiosos. Um dos jornalistas reconheceu o homem em fuga: Ícaro Melo, presidente da Emop, que aparece em um vídeo da polícia ao qual a Pública teve acesso, esquivando-se de Tukano.

“Sempre tentamos conversar em várias esferas, mas nunca conseguimos nada”, lamenta o cacique. “Em pleno 2013, sendo que o que a gente mais faz hoje em dia é se comunicar, trocar informação, como que o governo não se comunica, não dialoga, já chega com batalhão de choque?”, questiona  Paula Kossatz.

Até agora, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, não deu uma declaração pública sobre os acontecimentos do fim de semana.

O QUE QUEREM OS ÍNDIOS

A ocupação indígena, batizada de Aldeia Maracanã, aconteceu no dia 20 de outubro de 2006, após quase trinta anos de abandono do prédio com a tranferência do Museu do Índio para o Botafogo em 1978. A intenção dos indíos é preservar a memória do local, daí a presença de representantes de 17 etnias diferentes (entre elas, Pataxó, Guajajara, Apurinã, Tukano, Guarani e Tupi-Guarani) no interior do prédio. Eles têm acesso a água e eletricidade fornecida pela Conab, e muitos frequentam as aulas do EJA (Educação de Jovens e Adultos).

“É um local histórico, onde muitos líderes indígenas chegaram para reivindicar seus direitos junto ao Estado. Essa é uma memória que o prédio carrega e que não queremos deixar morrer”, afirma Tukano, referindo-se ao antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antecessor da Funai, que ali funcionava no início do século XX.

Carlos Tukano afirma que os índios também querem dar prosseguimento a um antigo projeto de Darcy Ribeiro de criar, no local, uma Universidade Indígena. “Queremos ter um ponto referencial, porque nós não temos nada como ponto referencial. É um espaço administrado por nós próprios. Foi uma forma que encontramos de retomar e manter a nossa história”, diz o cacique.

Tukano e outras lideranças indígenas estiveram com o presidente da OAB do Rio de Janeiro, Felipe Santa Cruz, e com Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, e solicitaram a eles que intermediassem um contato entre os índios e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Ambos aceitaram fazer a intermediação e fizeram uma carta de intenção para levar até o governador. A carta foi protocolada na última segunda-feira, às 18h. No entanto, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro já afirmou, em nota enviada à Pública pela assessoria de imprensa, que vai recorrer da decisão da Justiça e tentar derrubar a liminar obtida pela Defensoria Pública no sábado.

Por ora, os índios seguem alertando corações e mentes para a destruição planejada no Maracanã. Em tupi-guarani a palavra significa “semelhante ao som do chocalho” e foi escolhida pelos índios para o local por causa do barulho dos pássaros que ali viviam.

O QUE DIZ A LEI

Em 2001, por decreto municipal da cidade do Rio de Janeiro, todas as construções erguidas até 1937 passaram a ser protegidas. Para demoli-las ou alterá-las, a autorização passa pelo consentimento técnico do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (CMPC/RJ) – que publicou semana passada um parecer contrário à demolição.

Mas na última sexta-feira (11), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, por despacho de duas linhas publicado no Diário Oficial, deu permissão de entrada ao governo do estado para demolição. Segundo o defensor público federal, Daniel Macedo, isso não quer dizer nada.

“A questão tem que ser resolvida no plano judicial”, esclarece Macedo. “Em uma medida política, de forma arbitrária e ilegal, a prefeitura passou por cima de um órgão técnico. O prefeito tem poder, sim, para revogar, não há nenhuma dúvida. Mas primeiro lugar: ele não revogou pela forma correta, ele deveria ter revogado o decreto anterior. E o que ele fez foi publicar um despacho passando por cima de uma decisão colegiada e técnica”.

A entrada do governo do estado só poderá se dar de fato caso haja uma ordem judicial expressa. Para isso, o governo deve agendar uma ação autônoma própria, que o permitiria agir. “Por ora os índios são mantidos lá, até que haja uma ordem judicial específica”, explica o defensor.

Por enquanto, a lei municipal favorece o prédio com o que o defensor público federal chama de “tombamento legal”. O tombamento do patrimônio por órgãos técnicos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nunca aconteceu. De acordo com a assessoria do Instituto, o assunto foi analisado pelo IPHAN em 2006 e o processo de tombamento foi arquivado. Isso porque, segundo parecer do IPHAN Nacional, foi observada a “irrelevância nacional” e a má conservação do prédio. O patrimônio foi condenado pelo esquecimento.

O tombamento municipal está em andamento. Órgãos como o CMPC e o INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) já reconheceram a importância histórica e cultural do prédio. Para Macedo, “a coisa não andou dentro do Iphan ou outro órgão técnico por uma questão política”. Ele explica que o correto seria avaliar o valor do prédio de forma técnica. “Se o tombamento não foi avante, foi por decisão obscura. A questão foi solucionada em um plano político. Se fosse pelo plano correto, que é o plano técnico, o prédio já teria sido tombado. Isso foi para atender interesses escusos do capitalismo”, acredita.

 

As fotos desta matéria e da galeria foram gentilmente cedidas por André Mantelli.

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