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Entrevista

“O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”

Para estudioso português de governos autoritários, bolsonarismo soma “nostalgia da ditadura, discurso sobre a corrupção” e “ligação ao mundo evangélico”

Entrevista
29 de julho de 2019
12:02
Este artigo tem mais de 5 ano

Manuel Loff tinha 9 anos quando um grupo de capitães e soldados portugueses, cansados de serem mandados à África para uma guerra sanguinária contra os movimentos de libertação das colônias, derrubou uma ditadura que já durava 41 anos – a mais longeva da Europa. A lembrança mais viva que tem daquele dia 25 de abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos colocou fim ao regime salazarista (fundado por António de Oliveira Salazar), é do irmão, que tinha 14 anos, bêbado, a gritar: “Já não vou para a guerra!”.

Há pouco tempo uma amiga de infância fez Loff recordar que com 10 anos ele escreveu e dirigiu uma peça de teatro para ser encenada pelos colegas da escola. O tema era os últimos dias de Hitler no bunker. “A mim próprio me surpreende, não sei como cheguei até lá com essa idade”, confessa. Quando era criança, o pai lhe contava histórias sobre a Guerra Civil Espanhola. Ainda garoto, ia a bibliotecas tomar emprestados livros sobre as Grandes Guerras e pedia de presente de Natal obras sobre o nazismo. Hoje, aos 54 anos, é um dos historiadores mais respeitados em Portugal quando o assunto são regimes autoritários, em especial como o salazarismo e o franquismo. É autor de vários livros, entre eles O nosso século é fascista (2008) e Ditaduras e revoluções (2015) – nenhum deles publicado no Brasil.

Atualmente divide o seu tempo entre Portugal, onde é professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto e pesquisador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e Espanha, onde realiza parte da sua investigação. É doutor pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, na Itália, e colabora com várias universidades e centros de investigação europeus e americanos. Também escreve com frequência para jornais e revistas portugueses. Acompanha com atenção e preocupação o crescimento da extrema direita no mundo. Não hesita em classificar o governo de Jair Bolsonaro como representante do neofascismo. “O discurso que tem sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”, resume. Leia abaixo a entrevista.

Para Loff “o que vemos hoje é um ataque a toda lógica redistributiva das políticas sociais”

Você estuda há mais de 30 anos os regimes autoritários. Quando olha para a extrema direita do século passado e a de agora, quais diferenças vê?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que já havia extrema direita antes do fascismo: desde o início do século 19 havia uma extrema direita antiliberal e contrarrevolucionária, mas era muito elitista. A extrema direita fascista, que é mais moderna, nasce a partir do fim da Primeira Guerra Mundial – como nasce a esquerda radical também. Depois de 1945, há um primeiro ciclo da extrema direita em que, em grande parte dos países europeus, ela, embora presente, é ilegalizada. Por exemplo, logo a partir de 1947 na Alemanha há partidos da extrema direita, com vários nomes, e só um deles é ilegalizado. É a geração dos nostálgicos e daqueles que se organizavam, em grande parte clandestinamente, para tentar salvar da Justiça muita gente que era procurada. Portanto, a extrema direita de 1945 até 1968, mais ou menos, é de uma geração que viveu a Segunda Guerra Mundial, viveu os regimes fascistas italiano, alemão e os movimentos fascistas de toda a Europa. Depois há uma segunda geração que, como evidentemente a esquerda dos anos 60, é diferente da anterior, que aprendeu várias das lições do passado. Por exemplo: abandonou o discurso abertamente racista para passar a um discurso culturalista. Desde a libertação de Auschwitz, em 1945, o racismo perdeu um enorme espaço, embora esteja presente, não pode ser assumido. Hoje, os racistas dizem que a sua incompatibilidade com as minorias é de natureza cultural.

Você concorda com a ideia de que a extrema direita vem crescendo em poder e importância desde o começo dos anos 1970 no mundo?

Bom, a derrota do nazifascismo foi uma grande derrota da cultura política da direita e significou, mais do que em qualquer momento político na história, uma virada à esquerda do ponto de vista social, da cultura política e do triunfo dos valores da esquerda em torno da democracia e de uma versão da democracia que exigia uma certa distribuição da riqueza e bem-estar social. Tanto que a maioria dos Estados capitalistas do Ocidente “rico”, que se chamava a si próprio desenvolvido, adotaram essas políticas de natureza social.

E havia uma ideia de que esses direitos individuais e coletivos eram um bem adquirido que não seriam perdidos…

Evidentemente. O que vemos hoje é um ataque a toda lógica redistributiva das políticas sociais. Estão, por exemplo, as propostas de flat tax, como agora chamam na Itália, de que todos pagam rigorosamente a mesma coisa… A primeira versão de uma extrema direita com sucesso na Europa foi na Escandinávia: antes de atacar a imigração, focou-se contra o Estado de bem-estar social, pelo peso dos impostos. O seu primeiro alvo foram os mais pobres, dizendo que se estava a criar uma classe de preguiçosos que não querem trabalhar, para depois passarem a dizer, com mais sucesso, que os imigrantes vinham para “mamar da teta” do Estado de bem-estar social. Obviamente, invertendo tudo, pretendendo ignorar que qualquer comunidade de imigrante, de não nacionais, em qualquer sociedade, é em média muito mais jovem do que a média daquela sociedade e trabalha muito mais e ganha muito menos, portanto contribui incomparavelmente mais para a produção de riqueza e para a segurança social.

E qual é o momento atual da extrema direita mundial?

A partir dos anos 70 e 80, sobretudo a partir da consolidação da tese do choque de civilizações, a extrema direita toma Israel como vanguarda do Ocidente na luta contra o Islã e abandona o antissemitismo, que passou a ser um componente claramente minoritário no seu discurso. O alvo passa a ser a imigração, sobretudo se ela é muçulmana. E isso permite juntar o Sul do mundo com uma característica que, para a extrema direita, do ponto de vista identitário, é central, que é a religião. Porque a extrema direita nunca abandonou uma descrição do Ocidente branco e cristão que colonizou o resto do mundo – hoje, visto como um Ocidente judaico-cristão herdeiro das duas religiões monoteístas do Livro Sagrado. Isso é particularmente visível nas Américas, particularmente nos EUA e no Brasil, por via das novas igrejas pentecostais e evangélicas que deram uma virada de 180 graus na visão que tinham dos judeus.

Edir Macedo, para essa aproximação com Israel, mudou até de visual, adotando barba e quipá…

Essa é, portanto, uma das evoluções da extrema direita. Ela tende a abandonar a dimensão do discurso negacionista do Holocausto, sabe que tem que o fazer, e concentrar-se no novo inimigo, o Islã. Esse racismo culturalista permite criar uma plataforma de convergência de todas as sensibilidades reacionárias que descrevem a imigração, o imigrante, como “o outro”, e atrai muita gente que não partilha, ou não partilhava, muitas outras das bandeiras da extrema direita. E depois soma-se um outro ponto, que é muito visível no caso latino-americano – e nesse sentido o bolsonarismo é a versão mais completa e mais despudorada da extrema direita –, que é o do discurso da ditadura cultural marxista. Nesse ponto o bolsonarismo é mais Steve Bannon [estrategista da campanha política de Donald Trump em 2016 e conselheiro informal da campanha de Bolsonaro] que o próprio Trump.

Por quê?

A partir da tese de que há uma ditadura cultural marxista da esquerda, a extrema direita, numa escala internacional, avança com a explicação de que aquela se teria imposto através da escola pública. O que significa que a universidade e a escola pública seriam formadoras de esquerdistas. No fundo, com essa tese, eles atacam todas as ciências sociais, tudo quanto dizem a sociologia, a antropologia e a história. E no Brasil levou-se isso muito mais longe politicamente, e com mais eficácia, com o movimento Escola Sem Partido, cuja tese é de que todas as ciências sociais são engajadas, militantes, e portanto nenhuma delas é objetiva. Todas elas pretenderiam, desde há décadas, minar os fundamentos da natureza, da comunidade, da ordem social: a família, a pátria, a nação etc. Há ainda outra coisa que é muito visível no discurso do Bolsonaro, e também no do Trump, que já existia com Berlusconi, que é o papel das mulheres na sociedade. Já nem digo o universo LGBT, o mundo gay, mas particularmente as mulheres. É a tese de que todo feminismo é radical, todo feminismo é uma invenção da ditadura cultural da esquerda e o único que pretende é legitimar uma “ofensiva contra Deus”, como diria o ministro das relações exteriores do Bolsonaro. E, segundo eles, qual é a melhor forma de se agredir a Deus, e a ordem social e a família? Transformando o papel da mulher nas famílias e criando novas formas de família. E a extrema direita brasileira levou isso muito mais longe, não acho que do ponto de vista da formulação teórica, mas com muito mais sucesso do que noutro país.

Você defende a tese de que o mundo vive uma “transição autoritária” desde o 11 de Setembro de 2011. E o Brasil, em que ponto estaria nesse caminho até o fim da democracia?

O Brasil é dos casos mais avançados, porque a agenda política do governo atual inclui um programa aberto, explícito, de repressão e intimidação dos adversários, ameaça de ilegalização do maior partido da oposição, repressão sobre os movimentos sociais e ameaça de detenção de dirigentes políticos da oposição. E ainda que isso não se concretizasse… Bem, o Lula está preso, o Fernando Haddad ainda não, mas houve uma ameaça nesse sentido; Bolsonaro disse abertamente que ele deveria ser preso e o PT, ilegalizado.

E disse que as alternativas eram exílio ou fuzilamento…

Exatamente. As sociedades autoritárias não são simplesmente aquelas em que o Estado é autoritário, mas também a sociedade é autoritária. O que está a acontecer é uma intimidação sobre os adversários que vai reduzir a capacidade de manobra das oposições sociais e da resistência social – potencialmente é assim, agora falta ver os dados da realidade.

Isso é próprio de um Estado neofascista?

Isso é próprio de um Estado em transição para o autoritarismo que pode ou não reunir todas as características clássicas do fascismo. Mas isso é como a democracia, eu pergunto: os Estados em que nós vivemos são puramente democráticos? O Estado português é puramente democrático? Eu tenho muitas dúvidas em relação a isso. Quando falamos de regimes fascistas e regimes democráticos, falamos de processos de construção permanente da democracia e também do fascismo. A transição autoritária começa quando se degrada a democracia. E quando é que termina? Termina quando já não há democracia. Falta agora estabelecer se já não há democracia no Brasil.

Quem defende que o governo do Bolsonaro não é fascista diz que é impossível que haja 50 milhões de fascistas no Brasil.

Exatamente, e era impossível que na Alemanha, em 1933, existissem 17 milhões de nazistas…

Mas eu penso na frase que você escreveu num artigo recentemente: “O regime fascista não se sustenta só com fascistas”.

Nunca, em momento nenhum da história ele nasceu ou se consolidou apenas com fascistas.

Portanto, no Brasil não há 50 e tantos milhões de fascistas, mas há um percentual grande da população que tolera, aceita ou não se levanta contra isso.

Claro. Todas as soluções autoritárias se sustentam mais sobre o apoio, sobre a intimidação e o medo, ou a indiferença, dos demais. Em todas as soluções autoritárias há uma economia da violência, não se exerce violência sobre todos. E normalmente, quando se exagera, quando se perde o controle do exercício da violência, a reação pode ser demasiado forte e pode provocar, por exemplo, uma guerra civil e a derrota do regime opressor. A indiferença é tão central na sustentação de um regime quanto é o nível de apoio. É totalmente a-histórico e associal imaginar soluções políticas, por mais totalitárias que elas fossem, apoiadas por 100% ou 99% das pessoas. Elas só sobrevivem se tiverem uma minoria muito escassa e sem apoio, ou sem suficiente apoio, que lhe resista e sobre a qual se possa exercer essa repressão “econômica”. E precisa de ter um nível suficiente de apoio, que até pode ser muito reduzido, desde que haja uma grande maioria de indiferentes ou intimidados. Era entre estes que, durante a ditadura em Portugal, se escutava a frase “a minha política é o trabalho”.

Você considera que o governo Bolsonaro tem características suficientes para ser chamado de fascista ou neofascista?

O fascismo não se impõe, como disse, da noite para o dia: o programa do governo Bolsonaro é socialmente tão reacionário e, na sua tentativa de fundir os interesses das direitas políticas e econômicas do Brasil, tão ambicioso que deverá avaliar da necessidade de usar uma violência institucional, paralegal, que está fora do alcance de qualquer governo democrático. Se não hesitar em usá-la, a prática será muito próxima da abordagem fascista. O discurso que tem sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21.

Voltando à questão do ataque aos movimentos feministas, essa resposta abertamente machista, de um discurso de retomada de poder, é uma das características desse novo fascismo?

Há uma evidente falocracia e um neopatriarcalismo em tudo isto. A extrema direita raramente assume abertamente a defesa da desigualdade social e política entre homens e mulheres: limita-se a defender o que era a família tradicional. Muitos dos discursos que a extrema direita tem desde 1945 são discursos que transformam o perpetrador numa vítima. Por exemplo, os ex-combatentes de guerras ofensivas perpetradas por vários países ocidentais em vítimas da própria guerra; no Brasil, transformaram os militares que torturaram em vítimas da guerrilha da esquerda, da mesma forma como nos EUA transformaram os combatentes da Guerra do Vietnã em vítimas dos vietnamitas. A mesma coisa é feita com os homens hoje, como se faz com o patrão que é vítima do empregado que não trabalha e está poderosamente defendido por um sindicato, o patrão esmagado pelo Estado que lhe rouba os impostos. Reinventa a organização da sociedade e inverte tudo: o homem, afinal, é que é vítima das mulheres feministas, o empregador é vítima do empregado… E desta forma recupera como vítimas da contemporaneidade, da democratização das relações sociais, aqueles que eram/são os grupos dominantes.

Se na Europa a extrema direita usa a “ameaça” da imigração para fomentar o discurso do medo e ganhar votos, no Brasil o demônio é o comunismo, embora eles aparentemente nem sabem muito bem o que é e quem seja comunista.

Mas sabem porque usam o comunismo. É muito revelador no bolsonarismo, logo desde a sua primeira versão antipetista, como recuperaram toda a linguagem anticomunista dos anos 60 e 70. O Brasil tem dois partidos comunistas, o velho Partidão e o PCdoB, que são comparativamente menores em relação a outros países, e foram aliados menores do PT no poder. Será tudo, menos razoável, dizer que há uma “ameaça comunista” no Brasil – ao contrário do que aconteceu em Portugal, em que estiveram no poder, na França, até na Espanha, em que em determinadas regiões governaram. E ainda assim, eles recuperam diretamente o velho discurso anticomunista. É, também, uma questão de memória, e isso tem um significado particular porque eles sabem que ainda funciona.

E esse ataque às universidades também não é uma coisa nova, verdade?

Todos os Estados autoritários atacam as universidades. Todas as fórmulas políticas, e sobretudo quando se transformam em Estado, querem ter os seus instrumentos de formação e de enquadramento – e as escolas e universidades são alguns deles – e querem ter, ao mesmo tempo, uma bolsa de intelectuais orgânicos que consigam formular, com um discurso relativamente erudito e outro, mais aberto, voltado às massas, aquilo que é a sua ideologia. Se lermos as intervenções espontâneas do Bolsonaro, e mesmo os discursos redigidos, aquilo é de uma grande pobreza de construção. Pode ter um grande sucesso dizer coisas como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, é verdade, mas é pobre.

É importante, portanto, controlar o pensamento crítico nas escolas e universidades…

O que hoje a extrema direita faz atacando a universidade e a escola pública já tem 200 anos, existe desde as revoluções liberais no final do século 18, início do 19, quando se criam os sistemas públicos de educação. Foi quando o Estado veio dizer que a educação é uma tarefa do Estado e dever dos cidadãos, retirou o monopólio da pouca educação que havia das mãos das igrejas e entrou diretamente num campo, o da formação moral doutrinária, que as igrejas tinham para si próprias. Antes de as extremas direitas do século 20 atacarem a educação pública, já a Igreja havia atacado a educação pública no século anterior. As direitas descreveram o Estado da forma como as igrejas sempre fizeram, acusando-o de querer doutrinar as crianças e roubá-las das famílias – depois de as igrejas terem querido ensinar às crianças tudo sobre a família, sobre identidade de gênero, sobre sexualidade, ordem e obediência. Essa disputa de hegemonia através da educação entre os Estados liberais, e depois democráticos, e as igrejas hoje é reproduzida pela extrema direita que acusa todas as ciências sociais, todas as humanidades de terem uma versão abertamente ideológica. Diga-se de passagem que isso só tem sucesso porque uma grande parte da sociedade também pensa dessa forma. Eu vivo rodeado de gente que entende que o que disserem as ciências tecnológicas e exatas é mais ou menos indiscutível, mas o que diz a ciência social não é especializado; que o que eu, um historiador, disser, ou um antropólogo ou sociólogo, é sempre opinião.

O discurso do governo atual no Brasil é de que a formação deve seguir uma lógica utilitária e que cursos como filosofia e sociologia não trazem retorno para a sociedade.

Em Portugal, até o final da ditadura salazarista, não havia sociologia, antropologia ou psicologia na universidade. Em todos esses casos só havia curso nas escolas de formação de funcionários coloniais. Uma visão utilitarista. Aliás, as primeiras ciências sociais do século 19 nascem para ajudar a dominação, para o conhecimento dos povos colonizados. Aconteceu também no Brasil, era para conhecer os indígenas. De repente, quando a ciência passou a ser um instrumento de emancipação, os detentores da ordem passam a não gostar dela e entender que ela é pecaminosa, blasfema ou, na sua versão no século 20/21, militante. Desde Galileu foi assim. Ou seja, tudo o que eu investigo, interpreto e concluo com uma metodologia científica da interpretação da realidade é simplesmente um discurso que sustenta uma ideologia.

A velha batalha fé versus ciência.

Para esta extrema direita religiosa, o que conta é o texto sagrado, é uma descrição da natureza feita a partir do sagrado, e que é imutável. Esse debate tem milhares de anos. E, portanto, este ataque não é novidade nenhuma, e digamos também que não é exclusivo da extrema direita. Mas é muito grave o que se está passando agora: o neoliberalismo começou a reverter uma política de investimento na educação que vinha desde os anos 40, desde o fim da Segunda Guerra, em vários países ocidentais, e entra no discurso de que a universidade tem que se ligar ao mundo do trabalho – que é o mundo da empresa, na verdade –, de que a universidade – e a escola em geral – deve mostrar o seu caráter prático, e que portanto é um desperdício de bens públicos formar essa gente. E pior ainda se são um “bando de vermelhos”.

O bolsonarismo é uma fórmula que pode se espalhar pela América Latina?

Acho que tem algumas características que lhe permitiriam claramente expandir-se. O bolsonarismo é, sobretudo, uma somatória de nostalgia da ditadura militar, com demagogia anticorrupção e um discurso político centrado na questão moral. Na questão puramente moral, dois dos líderes das direitas clássicas que subiram ao poder com o apoio da extrema direita, Silvio Berlusconi e Donald Trump, são homens que não podem reclamar probidade alguma na sua vida profissional tributária e familiar. Isso não impede que, em ambos os casos, possam fazer discursos profundamente reacionários sobre a família. Com uma “cara de pau”, como vocês brasileiros dizem, um despudor, que não tem nome. O Berlusconi fazia discurso sobre a família depois de publicamente meter a mão nas mulheres. O Trump é a mesma coisa. Portanto, o bolsonarismo é simplesmente o somatório dessa nostalgia da ditadura, discurso sobre a corrupção –portanto demagogia moralista –, a que se soma depois uma ligação ao mundo evangélico. E se essas três condições existirem em outras sociedades latino-americanas, o bolsonarismo poderia se expandir, conseguiria se replicar. E creio que há características muito semelhantes na direita venezuelana, mexicana, argentina e chilena, para que isso aconteça.

Você é capaz de arriscar uma previsão para o futuro próximo? A extrema direita ainda continuará a crescer pelo mundo ou já chegou no teto?

Do ponto de vista estritamente eleitoral, creio que ainda não atingiu teto na maioria dos casos. O problema, contudo, não creio ser eleitoral: a extrema direita não chegou nunca sozinha ao poder, nem chegará no futuro. O seu triunfo depende da capacidade de contaminar as políticas do Estado por via das suas alianças com o resto das direitas, que ocupam facilmente o poder, e por via dos apoios muito substanciais que têm dentro dos grupos sociais dominantes, dentro do próprio aparelho de Estado, sobretudo nas forças armadas e policiais, nos serviços de informação, na própria magistratura. O perigo para a democracia não é exterior ao Estado e aos sistemas de representação, ele está no seu interior.

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