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Entrevista

Brasilianista busca revelações sobre ditadura em 100 mil documentos dos EUA

Em visita a Porto Alegre, o pesquisador James Green, da Universidade Brown (EUA), fala do recém-descoberto telegrama de Geisel e da relação do governo americano com a ditadura brasileira

Entrevista
23 de maio de 2018
12:03
Este artigo tem mais de 6 ano

Diretor de um dos mais importantes centros de estudos sobre o Brasil no exterior, na Universidade Brown (EUA), James Green lidera o projeto Opening the Archives, que já digitalizou 35 mil documentos sobre a ditadura no Brasil – e vai pedir ao Departamento de Estado a liberação dos cerca de mil papéis censurados encontrados entre eles. O objetivo é localizar documentos relevantes, como o telegrama da CIA sobre o general Geisel recentemente descoberto por Matias Spektor, pesquisador da Fundação Getulio Vargas. No documento encontrado por Spektor, o então presidente Geisel diz que o Planalto autorizaria diretamente as execuções, que deveriam se limitar aos “subversivos mais perigosos”.

“Não houve bons e maus, ou maus e piores entre os ditadores brasileiros”, diz Green sobre Geisel, visto como o general da abertura, em oposição a uma ala mais dura do regime.

Além de pesquisar a ditadura brasileira na Universidade Brown, Green, que viveu em São Paulo entre 1976 e 1982, está escrevendo a biografia de Herbert Daniel, estudante de medicina que participou da luta armada na ditadura e foi um dos pioneiros da militância gay no país. Como o próprio Green, que em 1979 fundou o Somos, grupo de afirmação homossexual, no Brasil. “A esquerda era muito atrasada, havia um tipo de virilidade masculina necessária para ser guerrilheiro: frio, valente, capaz de fazer qualquer coisa pela causa. Era aquela imagem de Che Guevara”, rememora.

De passagem por Porto Alegre, onde proferiu uma aula no curso “O golpe de 2016 e a nova onda conservadora no Brasil”, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Green se hospedou na casa de Dilma Rousseff por uma semana, como estava combinado desde quando ele a ciceroneou por universidades americanas após o impeachment – na visão de Green, um golpe. O pesquisador se aproximou da ex-presidente durante a pesquisa para a biografia de Herbert Daniel, que será lançada em agosto. Dilma foi confidente de Daniel quando ele integrava o Comando de Libertação Nacional (Colina), em Belo Horizonte. “Quando ele se apaixonou por um companheiro da organização, ela o incentivou a falar. Mas o outro não era homossexual, ele ficou arrasado e foi a Dilma que deu colo, ajudou a superar”, revela Green.

Como recebeu a recente revelação de um documento da CIA que mostra Geisel autorizando execuções?

É muito importante. Nós sabíamos há muito tempo que a política de Geisel não era de prender, mas de matar [os opositores]. Entre os historiadores sempre houve uma explicação muito simplificada sobre a ditadura no Brasil: Castelo Branco era mais moderado, depois vem a linha dura – Costa e Silva, Médici – e, então, a abertura com Geisel, lenta, gradual e segura, até a democratização. É como se fossem os bons e os maus, ou os maus e os piores, mas isso não existe. Então, essa revelação de documentos indica que Geisel violava [os direitos humanos] tanto quanto os outros e que isso era uma política de Estado.

James Green lidera o projeto Opening the Archives, que já digitalizou 35 mil documentos sobre a ditadura no Brasil

Acredita em novas revelações?

É possível. Eu tenho um projeto que se chama Opening the Archives [Abrindo os Arquivos], com uma meta de ter 100 mil documentos abertos. Já digitalizamos 35 mil documentos até agora: 19 mil já estão disponíveis no site, e vamos subir outros 15 mil até o final do ano. Encontramos mais de mil documentos censurados, vamos pedir a liberação deles ao governo e esperamos que existam novas revelações. Também estamos em busca de arquivos alternativos. Por exemplo, em 1971 o Senado fez um inquérito sobre o envolvimento americano com a polícia brasileira. Os relatórios foram publicados, a declaração da CIA sobre essas operações não foram. A gente vai tentar liberar essa publicação, pois ela está em poder do Senado, não da CIA. Ninguém nunca pediu essa autorização.

O Itamaraty encaminhou um pedido de informações ao governo americano. Acha que terá efeito?

É muito difícil saber porque é tanta bagunça na minha terra… Trump está atacando instituições de uma maneira tão brutal que os funcionários públicos estão indignados. Então é possível que, como forma de resistência a Trump, alguns ajudem a liberar documentos que normalmente seriam vetados. É difícil saber, mas pode ser que saiam novos documentos sem [o governo] querer. Eu também acho que a pessoa que fez a liberação desses documentos não estava prestando muita atenção. Achei muito curioso ter saído, mas não tenho uma ideia muito conspiratória sobre isso.

Como avalia a participação dos Estados Unidos no golpe de 1964?

Eu sempre insisto que é um erro culpar demais os americanos. Como já foi revelado por documentos do Departamento de Estado, o embaixador Lincoln Gordon e seu adido militar no Rio de Janeiro, Vernon Walters, apoiaram, sim, ativamente a conspiração para derrubar o governo João Goulart e garantiram apoio aos generais brasileiros. A administração Lyndon Johnson organizou a operação Brother Sam, mandando porta-aviões, equipamentos e armas para reforçar os militares brasileiros caso estourasse a guerra civil. E depois o governo americano enganava e mentia a parlamentares dando informação parcial e falsa para justificar o apoio ao golpe. Mas, mesmo que os Estados Unidos não tivessem tomado uma posição, os militares teriam se mantido no poder – talvez fosse mais difícil conseguir empréstimos do FMI num primeiro momento, mas eles iriam conseguir depois. O fundamental no golpe de 1964 e no golpe de 2016 [o impeachment] foram os brasileiros; a elite brasileira sabe manobrar para manter-se no poder. Essa reação anti-imperialista, nacionalista tira um pouco da responsabilidade nacional [sobre os eventos políticos].

Que tipo de informação falsa ou parcial era repassada sobre o Brasil aos americanos em 1964?

Havia um discurso de legalidade, de que o novo governo seria o caminho para instalar a democracia no país. E isso funcionou para muitos políticos e para a imprensa também, porque ainda não tinha uma crítica muito grande à política [internacional] norte-americana. A Guerra do Vietnã é que mudou isso. Em vários telegramas enviados para a Casa Branca, o embaixador Lincoln Gordon argumenta que o processo no Brasil em 1964 cumpria perfeitamente os procedimentos legais e constitucionais e respeitava totalmente as regras democráticas. Ele trabalhou duro para convencer [o presidente Lyndon] Johnson a reconhecer o novo governo, o que foi feito no dia 2 de abril de 1964, legitimando o golpe e colocando o selo de aprovação dos Estados Unidos nessa mudança ilegal do poder. No dia 3 de abril, Johnson chamou lideranças do Congresso para dizer que o governo norte-americano estava apoiando a democracia no Brasil, e, depois dessa reunião, o senador democrata progressista por Oregon Wayne Morse declarou à imprensa que a situação política no Brasil não era resultado de ação militar ou de um golpe. Que a deposição de João Goulart era resultado da ação do Congresso, reforçada por um grupo militar que garantiu a preservação do sistema constitucional brasileiro. Em comentário a seus colegas senadores mais tarde, reiterou suas conclusões, justificando que o Brasil não era uma ditadura militar porque havia intercâmbio de pontos de vista no Parlamento, na imprensa e na opinião pública. Esse mesmo senador estava, naquele momento, enfrentando a política de Johnson no Vietnã, só que ele foi manipulado, convencido pela propaganda, de que era um golpe para garantir a democracia. Mas em outubro de 1965, depois que o AI-2 aboliu as eleições diretas presidenciais, ele percebeu a armadilha e passou a denunciar inclusive o apoio financeiro [do governo americano] ao regime.

O senhor assume a tese de que Dilma foi vítima de um golpe em 2016. Há semelhanças entre o golpe de 1964 e o impeachment de Dilma pelo Congresso?

Sim, em 1964 a justificativa era justamente que eram procedimentos legais, que cumpriam a Constituição. Foi dito que o João Goulart abandonou o país, o que era mentira porque ele estava no país quando eles declararam vaga a Presidência. O presidente da Câmara dos Deputados assumiu, conforme exigia a Constituição, convocaram eleições e elegeram Castelo Branco presidente do Brasil. Hoje é a mesma situação. Em 2016, enviei uma carta aberta ao embaixador americano na OEA [Organização dos Estados Americanos], Michael Fitzpatrick, criticando sua posição sobre o golpe. Ele disse que havia claro respeito pelas instituições democráticas no Brasil, que o impeachment havia cumprido rigorosamente o procedimento legal e as regras constitucionais. Precisamente os mesmos argumentos utilizados pelo embaixador Lincoln Gordon 50 anos atrás, quando ele insistiu no reconhecimento imediato do governo militar no Brasil. E essa foi a posição do governo Obama em 2016.

Foi por isso que, quando eu estava em Nova York em março de 2016, preparando o congresso da Associação de Estudos Brasileiros (Brasa), que seria em abril, pensei que deveria fazer alguma coisa. Então escrevemos um abaixo-assinado e conseguimos, em uma semana, 500 nomes – depois, no final, chegou a mil e não sei quantos. Levamos esse abaixo-assinado para o 13º congresso da Brasa, na Universidade Brown. Na assembleia geral, apresentamos uma moção de apoio ao Brasil [um manifesto denunciando ameaças à democracia brasileira pelas atitudes do Judiciário] e houve um grande debate porque algumas pessoas acharam que não era correto tomar uma posição. Isso foi um dia 1º de abril, achei muito simbólico. Depois, em maio, a Latin American Studies Association (Lasa), no congresso em Nova York que celebrava os 50 anos da associação, indicou, de forma unânime, uma comissão para investigar o impeachment. O presidente era um professor de Harvard, Sidney Chalhoub, que estuda a escravidão no século 19, e ele fez um relatório explicando por que era um golpe o que estava acontecendo no Brasil. Depois foi feito um plebiscito para ratificar essa posição: 35% dos quase 7,5 mil membros votaram, e 87% dos votantes eram a favor dessa posição. Simbólico também porque em 1970 houve uma moção de repúdio a tortura no Brasil aprovada pela maioria dos integrantes dessa associação.

Era na Lasa que se reuniam os críticos à ditadura no Brasil a partir de 1964?

A Latin American Studies Association [Lasa] foi criada um pouco depois da Revolução Cubana, nos Estados Unidos. Naquela época, o governo americano começou a incentivar estudos nas universidades para antecipar o que estava acontecendo, evitar novas revoluções. Deram muito dinheiro para pesquisas, introduziram centros de estudos latino-americanos, e muitos acadêmicos acabaram indo para a América Latina. Só que eles voltavam politizados contra o imperialismo americano porque encontravam a miséria e a pobreza. Em 1970, a Lasa organizou o seu segundo congresso, em Washington, trazendo o Márcio Moreira Alves, que, como deputado, fez a primeira denúncia sobre tortura no Congresso Nacional [em 1966]. Isso depois foi utilizado para a sua cassação e como pretexto ao AI-5 [em dezembro de 1968]. Ele falava inglês fluentemente e ganhou a audiência do congresso. Então foi aprovada uma moção de solidariedade ao Brasil, e Thomas Skidmore, meu eminente professor, foi encarregado de conduzir uma investigação sobre as violações do regime – mas o governo brasileiro vetou o visto dele. A partir daquele congresso da Lasa, um grupo de brasilianistas começa a fazer uma série de campanhas de solidariedade. Por exemplo, quando a filha do [editor] Caio Prado Júnior vai a Nova York pedindo ajuda para denunciar a prisão de seu pai. A carta aberta ao governo brasileiro foi assinada pelos intelectuais mais importantes e saiu no Washington Post e no New York Times.

“Não houve bons e maus, ou maus e piores entre os ditadores brasileiros”, diz Green sobre Geisel

Qual foi o efeito dessas denúncias no Brasil?

O efeito foi muito maior do que a gente imaginava. Por exemplo, em 1968, após o AI-5, Orlando Geisel, que era irmão do general Ernesto Geisel, chamou o embaixador americano pedindo que fizesse uma intervenção nos jornais dos Estados Unidos para impedir críticas. Nós sabemos porque o embaixador fez um relatório dessa reunião, então temos essa informação. Orlando Geisel estava furioso!

[Há documentos mostrando] o esforço do governo para censurar exibições nos Estados Unidos do documentário Brazil, a report on torture, que é um filme muito pesado porque as pessoas contam como foram torturadas, com entrevistas de exilados políticos no Chile [que haviam sido] trocados pela libertação do embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado no Rio de Janeiro em 1970. Eu tenho um outro documento que mostra que vários integrantes do governo se queixaram para Delfim Netto de que, quando iam para Europa, escutavam que o Brasil era um país da tortura e violação de direitos humanos.

O governo americano reconheceu formalmente que houve tortura no Brasil?

É interessante notar que as denúncias sobre a tortura no Brasil foram tão fortes que, quando houve golpe no Chile [1973], com prisões e mortes, o fato de que os brasileiros haviam convencido os congressistas norte-americanos de que a tortura não era uma mentira, não era propaganda da esquerda, permitiu que [os Estados Unidos] recebessem os chilenos. Foi concedido asilo político para chilenos já em 1975, o Congresso aprovou moções condenando as violações de direitos humanos. Tudo isso porque os brasileiros abriram caminho para esse trabalho.

Como foi a experiência de morar em São Paulo nos anos 1970?

Eu tinha um trabalho no meu partido político, a Convergência Socialista, que hoje em dia é o PSTU. Dentro do movimento eu sempre vivia uma contradição entre a minha sexualidade, a minha vida pessoal, e a esquerda atrasada [no reconhecimento dos homossexuais]. E lutei para mudar a cultura aqui no Brasil. Há muito tempo eu queria retomar essa experiência, como pesquisador, para trabalhar com o conceito de masculinidade revolucionária, ou como se construía dentro da esquerda uma noção de virilidade masculina que era necessária para ser guerrilheiro: frio, valente, capaz de fazer qualquer coisa pela causa. Era aquela imagem de Che Guevara, sabe?

Então eu resolvi fazer um artigo, comecei a procurar material. Foi aí que eu descobri as memórias de Herbert Daniel. Já sabia dele vagamente, li Passagem para o próximo sonho, publicado em 1982, um dos melhores livros de reflexão sobre a ditadura. O livro fala muito sobre a homossexualidade, que a esquerda não entendia. Fiquei fascinado.

Foi como surgiu seu projeto atual, em finalização?

Pensava em fazer um trabalho sobre ele, ia a conferências e atividades acadêmicas e comentava com meus colegas, até que um dia alguém sugeriu que eu falasse com a mãe dele e me deu o contato da dona Geni, que me aceitou na hora. Fui a Belo Horizonte fazer uma entrevista com ela e, depois de duas horas de conversa, estava convencido. Ela disse “Faça esse livro sobre o meu filho, ele está esquecido, ele merece” e me deu várias dicas, telefones, me colocou em contato com muita gente. Oitenta pessoas depois e todos os arquivos possíveis depois, vou lançar [o livro] aqui no Brasil pela editora Civilização Brasileira.

É um olhar diferente sobre a história do Brasil?

Ninguém no Brasil está explicando que você pode ser gay e ser uma pessoa da esquerda, comprometida com as lutas populares. Herbert Daniel tentou juntar os movimentos políticos e sociais com o movimento LGBT e os movimentos das pessoas portadoras de HIV/aids. Era uma figura que merecia uma biografia. É o último dos meus três livros principais sobre o Brasil [os outros são Além do carnaval – a homossexualidade masculina no Brasil do século 20, que será reeditado com um novo capítulo em 2019, e Apesar de vocês – oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos 1964-1985]. Além disso, vou publicar agora nos Estados Unidos uma coletânea com 120 documentos sobre a história do Brasil, a grande maioria desses documentos traduzida pela primeira vez para o inglês.

A ex-presidente Dilma deu depoimento para o livro sobre Herbert Daniel?

Sempre quis entrevistá-la, mas ela nunca podia porque era chefe da Casa Civil [durante o governo Lula] e, depois, presidenta. Em junho de 2016, fizemos um evento chamado Historiadores pela Democracia, quando ela já estava cativa no Palácio da Alvorada e me colocaram na mesa ao lado dela. Nem sei o que eu falei naquele dia, estava muito nervoso, preocupado com meu português. Mas em algum momento disse que estava fazendo um livro sobre o Herbert Daniel, e ela: “Mesmo, você conheceu ele?”. Tentei explicar, mas naquele dia não dava para conversar, todo mundo queria falar com ela, tirar selfie. Eu tinha uma cópia no ônibus, em inglês, dei a ela, que falou que ia ler. Aí ela pediu para eu passar no Palácio de novo. Nesse dia, eu fui lá para uma entrevista que era para ser de 45 minutos e durou duas horas e meia. Foi maravilhosa [a entrevista], ela gostava muito dele. Inclusive, quando ele se apaixonou por outro companheiro da organização, ela foi sua confidente, deu muito conselho para ele. Incentivou que falasse com o companheiro, mas o cara não era homossexual. Ele ficou arrasado e foi a Dilma que deu colo, ajudou a superar.

Quando você faz uma biografia de um guerrilheiro que viveu na clandestinidade durante cinco anos, ninguém sabe muita coisa. Ele já morreu, então não pode contar. Ele não foi preso, não tem como pegar os registros. As pessoas não lembram, elas nem querem lembrar desse período. Então Dilma foi muito legal, me ajudou a lembrar essas coisas, e aí virou assim, essa ligação entre nós, ficamos amigos.

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