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Entrevista

Brasileiros não querem “Estado mínimo”, diz cientista político

Para Rafael Georges, da Oxfam Brasil, agenda liberal “pegou carona” na eleição de Bolsonaro, mas não prospera entre os brasileiros, como demonstra a resistência da população à reforma da previdência

Entrevista
10 de abril de 2019
16:02
Este artigo tem mais de 5 ano

Mais de 80% dos brasileiros consideram que é obrigação do Estado diminuir as diferenças entre os muito ricos e os muito pobres; 75% concordam que as escolas públicas de ensino fundamental e médio são direito de todos; e 73% defendem o atendimento universal em postos e hospitais. Esses dados mostram que, no Brasil, a população ainda espera muito do Estado e, por isso, o receituário liberal que prega a diminuição de seu tamanho e influência na economia não encontra apoio maciço social por aqui.

Essa é a avaliação do cientista político Rafael Georges, coordenador de projetos da Oxfam Brasil, que apresentou ontem a pesquisa desenvolvida em parceria com o Instituto Datafolha sobre a percepção dos brasileiros em relação às desigualdades. O estudo, que está em sua segunda edição – a primeira foi divulgada em 2017 –, também revela que 86% dos entrevistados acreditam que o país não avançará se não for atenuada a distância entre a base e o topo da pirâmide social.

Em entrevista à Pública, Georges diz que a resistência à reforma da Previdência é um “termômetro muito claro” de como a agenda econômica liberal “não prospera no Brasil” e destaca que ela faz sentido apenas para “quem está muito confortável hoje e vive nos seus apartamentos no centro expandido”. “Para quem depende de serviços públicos para poder manter um orçamento balanceado ou minimamente digno, isso não é um projeto”, analisa.

Rafael Georges é cientista político e coordenador de projetos da Oxfam Brasil

Segundo o estudo, a grande maioria da população entende que o Estado deve assegurar acesso a serviços públicos, como saúde e educação, e que tem a obrigação de diminuir a desigualdade social. Em sua avaliação, a agenda de defesa do Estado mínimo, representada pela equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro, tem começado a prosperar de fato entre a população ou só encontra eco entre as elites?

Ela não está prosperando, essa é a verdade. Essa agenda do Estado mínimo não começou agora, veio já com o fim do governo Dilma e com o governo Temer. A única medida de fôlego que reduz o papel do Estado aprovada até agora foi o teto de gastos, e ela foi aprovada na esteira do impeachment. Não tinha espaço público para a atual oposição [antiga base do governo Dilma] se organizar e fazer a defesa do Estado. Existia uma crise fiscal gigantesca e os parlamentares estavam dispostos a passar essa medida que não teria impacto imediato, e sim de longo prazo, na estabilização de contas. Então, se justificou num contexto muito específico, mas não é uma plataforma que passaria nas eleições. O que aconteceu é que as últimas eleições não foram sobre o tamanho e o papel do Estado, foram sobre valores, corrupção, sobre um partido em particular – ame-o ou odeie-o. Em uma sociedade super polarizada, essa discussão acabou deixando de lado uma outra [discussão] muito prática sobre política fiscal. Quando Michel Temer tentava aprovar a reforma da Previdência, tinha problemas no Congresso, porque os parlamentares estão muito mais próximos das suas bases e têm muito mais chances de perderem politicamente do que alguém do Poder Executivo – ainda mais alguém que não tinha muito a perder porque não havia sido eleito. Esse presidente de agora, que foi eleito, trouxe consigo uma equipe que tenta manter esse tipo de agenda, mas ele já entendeu que não vai conseguir passar as medidas que deseja, porque o Parlamento, mais sensível politicamente, não topa adotar medidas muito radicais. O Parlamento sabe que o Brasil tem um sistema eleitoral muito competitivo, que a Câmara sempre teve muita renovação – muito maior do que a dos Estados Unidos, país parecido em termos de sistema político –, e essa grande renovação faz com que os parlamentares queiram posições muito próximas às suas bases, para, numa próxima eleição, não serem acusados pelo rival de ter votado contra os interesses de quem representam. Essa resistência à reforma da Previdência é um termômetro muito claro de como essa agenda não prospera no Brasil. Mesmo que consigamos fazer reformas liberais muito radicais, a tendência é que isso gere um impacto político gigantesco – e aí haja uma espécie de retorno muito forte da população, que quer serviços públicos – ou elas, na hora H, não serão aprovadas a contento e vão ser muito desidratadas. Essa resposta toda para dizer que não, essa agenda não está prosperando, ela encontra muita dificuldade.

A pesquisa reforça o fato de que o brasileiro espera cada vez mais investimentos do Estado na sociedade para que a desigualdade seja atenuada. Qual a raiz dessa dessa percepção?

Existe no Brasil bastante realismo: as pessoas que vivem nas periferias sabem que, por mais que se esforcem, é muito difícil superar barreiras tão gigantescas para a mobilidade social, e isso faz com que sintam a necessidade do apoio do Estado, porque se não há apoio estatal, não sobrevivem, não têm vida digna. Essa visão liberal que muitos têm no Brasil é uma visão de futuro, para quem está muito confortável hoje, para quem vive nos seus apartamentos no centro expandido – “quero um Brasil dinâmico, competitivo, e aí o Estado tem que sair do cangote”. Mas para quem depende de serviços públicos para poder manter um orçamento balanceado ou minimamente digno, isso não é um projeto, aliás, isso é o antiprojeto. Acho que esse é o debate. É muito muito acadêmico, muito dogmático. Quando entra uma turma muito dogmática no governo, não consegue enxergar como é o mundo real, então um pouquinho de pragmatismo não cairia mal.

O levantamento revela que 49% das pessoas concordam que uma criança pobre que estuda tem as mesmas chances que uma criança rica que estuda – em 2017, esse percentual era sensivelmente menor, de 43%. Ou seja, embora haja a crença no Estado como provedor de direitos, também está presente a percepção de que a meritocracia é capaz de driblar a desigualdade. Isso é contraditório?

Não acho contraditório, acho que dá para ter os dois. O mérito não é um valor ruim em si – se eu puder ser beneficiado pelo fruto do meu esforço, vou me esforçar muito, então conceitualmente é ótimo. Ir para uma periferia e dizer que as pessoas são atendidas pelo Estado é ofensivo porque lá o Estado não aparece muito, a não ser como polícia para bater e matar. Fora isso, aparece um pouco, e esse pouco é muito valioso. Na verdade, deveria aparecer mais: se o Estado equalizar um pouco e deixar o mar parado, aí as pessoas conseguem nadar para frente com seus próprios esforços. Hoje, as pessoas lutam contra uma corrente que vai contra elas: a corrente das três horas no ônibus, da mulher ter que cuidar sozinha do idoso e das crianças da casa etc. Se o Estado de fato atua para tirar essa contracorrente e equalizar um pouco as condições, o mérito pode se manifestar. Por isso, não acho que é contraditório. O empate técnico [nesse quesito da pesquisa] me dá uma noção de muito realismo de uma boa parcela da população, de que não dá para se basear só em mérito.

Entre as prioridades para a redução de desigualdades o combate à corrupção recebeu nota 9,7 um pouco superior à do investimento público em saúde e educação e aumento da oferta de emprego e do salário mínimo, que obtiveram nota 9,6. Como você interpreta esse dado?

O Brasil foi confrontado com uma operação que colocou [o combate à] corrupção na pauta diariamente, isso é um ponto. O sistema de delações premiadas escancarou o modus operandi da corrupção e fomos inundados por novas informações sobre o funcionamento desse sistema. Desde 2014, isso aumentou muito, mas já aparecia antes, em 2013, quando houve aquela onda de protestos, e vinha pelo menos desde 2009 e 2010, quando aumentaram alguns índices de desconfiança em relação à democracia – o Latinobarômetro [organização que produz anualmente pesquisas de opinião em países da América Latina] pescou isso no Brasil na América Latina inteira. A gente desconfia que tem duas coisas: primeiro, a ascensão e a expansão das redes sociais, que acabaram expondo mais e potencializando a divulgação de notícias sobre corrupção; e, depois, a crise em 2008, que pode até ter atingido o Brasil menos do que deveria, mas foi percebida como um fenômeno global e atingiu vários outros países latino-americanos. Em algum lugar nesse caldo de indicadores deve estar um pedaço relevante da explicação de por que [o combate à] corrupção está tão [em] alta na pauta. Mas ela nunca foi baixa na pauta dos brasileiros, é importante dizer.

Seria mais uma questão de narrativa do que de lastro na realidade?

A gente acha que a corrupção é superestimada, ela polui a pesquisa. Corrupção desvia recursos, isso é um problema, e esses recursos muitas vezes iriam para políticas sociais – há o caso da máfia das ambulâncias, do desvio na merenda e vários outros de corrupção local com licitações pequenas que têm a ver com política social, então se o sistema se corrompe, está sendo retirado dele dinheiro que equaliza a desigualdade. Mas tem uma questão de grandeza. A corrupção no Brasil, por maior que seja, não chega a ser uma coisa gigantesca quando comparada ao tamanho do nosso orçamento público, esse sim gigantesco. Existe uma discussão a ser feita sobre políticas que acaba não sendo feita porque a gente discute, entre muitas aspas, o detalhe da corrupção. O pior impacto da corrupção, em nossa opinião, mais do que o desvio em si, é o efeito que ela tem na confiança das pessoas em relação às instituições públicas. Como ninguém quer o que está aí porque todo mundo é corrupto, ninguém acredita no papel do SUS, ninguém acredita no papel das universidades públicas porque “é um bando de doutrinador e está tendo desvio”, e “o SUS não funciona, é uma porcaria”. Reforça-se uma narrativa de que o sistema público todo é um erro. Isso é um grande problema porque as pessoas, ao mesmo tempo, dependem desse sistema. Então, no fundo, elas querem alguém que resolva rápido o problema da corrupção para que possam voltam a confiar no sistema público. E se elas não acharem quem faça isso, não sei o que acontece, aí é o próximo capítulo da nossa novela política, porque o atual governo não vai conseguir resolver isso rápido. Com a Previdência, se conseguirem reformar e forem muito agressivos, abrirão um espaço relevante no orçamento. O Brasil não tem lobby de pobre, pobre não vai lá bater no Congresso e é ouvido – quando vai, fica barrado do lado de fora. Então é muito pouco provável que, com esse espaço fiscal aberto, abra-se mais espaço para saúde e educação – o SUS é subfinanciado. Como a onda agora é de desvincular, deixar tudo livre, orçamento zero etc, o efeito será o contrário: quem vai ocupar esse orçamento é quem tem lobby, que é como sempre foi, e aí o cenário é caótico. Não achamos que esse debate sobre corrupção vai nos levar para muito longe. Realmente é necessário mudar essa narrativa para evitar o cenário apocalíptico para o qual estamos rumando a passos largos.

Essa narrativa, então, é evidentemente utilizada como instrumento político.

Sempre foi utilizada como instrumento político, desde a ditadura, da reabertura democrática, talvez desde sempre. Quando a questão da corrupção fazia parte de um debate de disputa partidária, estava em alta mas não sobreplantava a agenda. Quando a corrupção vem para o centro da discussão nacional por conta da Operação Lava-Jato, passa a ser usada política e ideologicamente. Esse segundo uso é mais perigoso, porque é empregado para justificar um projeto de país que não tem lastro, esse projeto que está agora em curso. Esse governo tem lastro eleitoral, não colocamos isso em xeque, mas o projeto liberalizante de redução do tamanho do Estado nunca teve lastro e não foi debatido nessas eleições. Se for às últimas consequências, esse governo vai fazer um grande favor de trazer isso ao debate público, já está trazendo. Um exemplo são os benefícios e privilégios do setor público em relação à Previdência. Esse é um debate que está sendo feito agora porque está sendo imposta uma agenda liberalizante muito radical.

Pode-se dizer que essa agenda pegou carona na eleição de Jair Bolsonaro?

É claro que tem que pegar carona, porque se você discute isso com a população todo mundo vai falar que é contra. Essas ideias sempre vão a reboque, são adendos para um governo que representa a população de outras formas.

Outro dado importante trazido pelo estudo é o de que 28% dos entrevistados enxergam a fé religiosa como caminho para melhorar a vida (é o elemento mais mencionado, até mais que acesso a saúde e educação). O que está por trás disso?

Primeiro, temos que olhar a pergunta – pesquisa de opinião pública sempre tem muitos limites. A pergunta que a gente testou foi “quais são os aspectos importantes para a sua vida melhorar”. Existe talvez uma coisa que vai a reboque do crescimento do neopentecostalismo no Brasil – um fenômeno rápido e relativamente recente: uma correlação entre o avanço dos evangélicos e a pobreza. A população toda está crescendo, a população de católicos também, mas num ritmo menor proporcionalmente. Os evangélicos estão avançando mais nas periferias, onde não há Estado para prestar o atendimento, então as comunidades se apoiam [nas igrejas]. É algo que merece absoluto respeito e tem que ser entendido pelo significado que tem nas famílias – o meu pastor, a minha comunidade, o que significaria isso, a força que isso me dá, a indicação cruzada de empregos, a ajuda para construir minha minha casa, alguém que pode ficar com a minha filha. É uma coisa de construção de comunidade que o Estado hoje não oferece. O Estado não oferece creche para todo mundo, muito pelo contrário, tem um baita déficit. Onde não tem Estado, as pessoas se organizam, e aí as igrejas, sejam elas evangélicas, católicas ou outros tipos de corpo religioso, ajudam e ocupam esse espaço. Elas agem como organizadores sociais.

De acordo com a pesquisa, 85% dos brasileiros se colocam na metade mais pobre da população. Por que isso é um problema para o combate à desigualdade social?

É mais que um problema simbólico, é real. O Brasil é um país de renda média, não um país rico – essa é uma falácia que precisa ser derrubada. Isso significa que o nosso projeto é o crescimento econômico. Existe uma parcela da sociedade que está muito comprometida com políticas que fomentem o crescimento, e isso não deve ser criminalizado. O fato é que o Brasil, sempre que cresceu – e nunca de maneira sustentada –, cresceu concentrando renda, e o nosso desafio é crescer distribuindo renda. Então, existe uma parcela da população que vai ter que ceder um pouco mais do que está cedendo hoje, porque crescer distribuindo significa adotar medidas que aqueçam a economia, aumentem o emprego e a renda geral de todo o mundo, mas também tributem mais a classe média, ofereçam serviços de maneira mais progressiva – ou seja, é universal, mas começo com quem é pobre. Cota universitária, por exemplo: a universidade é pública, todo mundo pode entrar, a quantidade de vagas cresceu nos últimos anos, mas se determina que metade é para quem cursou o ensino público, ou 25% são para negros. Essas cotas são políticas redistributivas que vão tirar da classe média, uma classe média que não é rica, de fato – não faz viagem internacional todo ano – e que é muito batalhadora, coloca seus filhos em colégios privados, paga saúde privada, paga muito imposto e eventualmente, em um fenômeno de crescimento, vai ser mais beneficiada, porque tem mais escolaridade e vai ficar com as melhores vagas, vai melhorar de qualidade de vida. Mas essa melhoria vai bater em um limite que é a política redistributiva. Isso tudo para explicar que, se todo mundo se acha pobre, nosso modelo de crescimento não consegue ser redistributivo porque ninguém quer dar, todo mundo acha que dá demais e que agora é hora de receber. Aí é que está o problema. Fizemos uma análise preliminar, que vamos lançar mais para frente, segundo a qual o ponto de quebra entre o momento em que você recebe menos e dá mais para o Estado em termos de tributação – uma conta entre tudo que você paga de tributo e tudo o que recebe em serviços – é relativamente baixo, de 5 mil reais. Então, com 5 mil reais por mês, você já está pagando mais impostos do que recebendo o serviço de volta. Em termos de como o serviço é usado hoje, porque a classe média opta por não usar escola pública em saúde pública, e eu entendo porque. Essa discussão de como a gente constrói esse vai e volta do Estado é difícil de fazer se todo mundo acha que já está dentro demais e é pobre. Vai ser dureza.

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