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Princípio da precaução foi retirado do capítulo sobre saúde humana e incluído em capítulo sobre desenvolvimento, que não pode ser evocado em disputas

Reportagem
15 de agosto de 2019
14:35
Este artigo tem mais de 5 ano

No dia 28 de junho, negociadores dos quatro países membros do Mercosul fecharam em Bruxelas um acordo comercial com a União Europeia que era negociado há nada menos de 20 anos e, para o governo brasileiro, “constituirá uma das maiores áreas de livre comércio do mundo” e pode aumentar o PIB em até US$ 125 bilhões. Depois de assinado, o tratado passa por um processo de revisão jurídica, tradução e ainda precisa ser aprovado pelos parlamentos dos países membros. A estimativa que o acordo entre em vigor em dois anos.

Mas, no ato do fechamento, uma guerra era travada a portas fechadas, segundo contou à Agência Pública e Repórter Brasil a diplomata Valeria Csukasi, Diretora Geral Para Assuntos de Integração e Mercosul no Uruguai. E ela envolve a política de afrouxamento das leis em relação a agrotóxicos do governo Bolsonaro.

A diplomata estava na sala da última reunião em Bruxelas e tentava, até o último minuto, negociar com os europeus um dos maiores pontos de contenção da negociação: o Princípio da Precaução.

“Eu diria que se não foi o último, foi o penúltimo tema a encerrar a reunião Ministerial. Foi uma discussão técnica que chegou até o nível dos Ministros, até o último minuto”, revela Valeria Csukasi.

O Princípio da Precaução é um instrumento jurídico muito utilizado pelos Europeus em acordos internacionais. Ele dá ao comprador o poder de recusar uma mercadoria por precaução, mesmo sem ter provas científicas, alegando que o produto pode causar algum dano a saúde humana ou ao meio ambiente. Isso significa, por exemplo, que se há notícias confiáveis de que um produto tem excesso de agrotóxicos, ele poderia ser recusado.

O objetivo do Mercosul era diluir o Princípio da Precaução para limitar os seus poderes. “A visão do Mercosul é que a União Europeia tende a usar isso como uma barreira ao comércio e não como uma medida justa perante um temor real”, diz Valeria Csukasi. Já do outro lado da mesa de negociação, os europeus “queriam somente [que entrasse no acordo] o Princípio com maiúscula. Queriam algo muito mais contundente”, revela. No final, o Princípio da Precaução entrou, segundo a diplomata, “parcialmente”. “Foi como uma espécie de empate técnico”.

Na prática, o impasse resultou em um Princípio da Precaução enfraquecido. Uma manobra no texto do acordo fez com que o Princípio não possa ser invocado em casos diretamente relacionados à saúde humana.

Além disso gerou-se a possibilidade de contestar a medida frente à Organização Mundial do Comércio (OMC) argumentando que o Princípio está sendo utilizado de maneira discriminatória para impor barreiras ao comércio.

Segundo a diplomata Valeria Csukasi, a manobra anula a possibilidade de se aplicar o Princípio ao uso dos agrotóxicos.

Negociadores do Mercosul trabalharam duro para que o Princípio da Precaução perdesse o seu status como Princípio e passasse a ser entendido pelo que Valeria chama de “Enfoque da Precaução.” Em vez de ser registrado no capítulo “Medidas Sanitárias e Fitossanitárias”, como queriam os Europeus, a menção ao Princípio aparece no acordo no artigo 10 do capítulo “Comércio e Desenvolvimento Sustentável”.

“A União Europeia aspirava ter uma referência do Princípio Precautório, que eles utilizam constantemente, tanto no capítulo Sanitário e Fitossanitário quanto no capítulo de Desenvolvimento Sustentável,” explica Valeria Csukasi.

Segundo a diplomata, na prática a mudança significa que o Princípio não pode ser invocado para impedir a entrada de alimentos que ameaçam a saúde humana, já que o capítulo de Desenvolvimento Sustentável “não fala nada de saúde humana nem da sanidade vegetal”.

“O que ficou [no acordo] foi uma referência ao Enfoque da Precaução e não o Princípio da Precaução em si,” ressalta a diplomata, revelando que houve resistência da União Europeia até o último minuto: “a forma como incluíamos, se era o Princípio da Precaução ou Enfoque, foi sim, um ponto de tensão [durante as negociações].”

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Princípio com P maiúsculo

Para garantir que o princípio perdesse os seus poderes, Valeria Csukasi diz que a cláusula foi meticulosamente redigida. “Veja que foi tudo pensado. [O Princípio da Precaução aparece] sem as maiúsculas, dizendo que tem que estar baseado em informação periódica, que é preciso tomar medidas para obter informação científica nova. Então dessa forma você começa a impor um monte de condições [para se aplicar o princípio]. Pode parecer uma besteira para você, mas citar o Princípio com letra maiúscula já muda tudo”, resume a diplomata.

Valéria ainda ressalta que o capítulo onde foi colocado o princípio (com p minúsculo) limita a aplicação da medida. “É um capítulo declarativo, um capítulo que nem sequer está sujeito à solução de controversas. Ou seja, esse acordo não pode ser acionado para o comprimento de alguma medida. Você não poderia dizer vou suspender as preferências [comerciais] ao Mercosul e ao Brasil em particular porque estão desmatando a Amazônia. Isso não é possível hoje porque não está previsto dentro desse acordo”, conclui a diplomata.

A quarta cláusula do mesmo capítulo possibilita que o Brasil e outros membros do Mercosul acionem a Organização Mundial do Comércio (OMC) quando o Princípio for invocado, alegando discriminação. A cláusula estipula que “as medidas não serão aplicadas de uma forma que possa constituir uma discriminação arbitrária ou injustificável ou uma restrição disfarçada contra o comércio internacional.”

Na prática, Valeria Csukasi resume que “[A União Europeia] não vai poder tomar medidas e se tomam medidas, essas medidas teriam que estar baseadas na ciência. Se não estiverem baseadas na ciência, o Mercosul pode recorrer contra as medidas tomadas pela União Europeia. Isso que é importante”.

Para além de afrouxar a regulamentação na Europa, existe a preocupação de que o acordo em si possa facilitar a venda de agrotóxicos para produtores brasileiros, já que tarifas comerciais vão experimentar uma redução significativa para ambos os blocos. Segundo nota emitida pelo Itamaraty, “após a desgravação prevista no acordo, 92% das importações do MERCOSUL e 95% das linhas tarifárias entrarão livres de tarifas na EU.”

Valeria Csukasi é diplomata e Diretora Geral Para Assuntos de Integração e Mercosul no Uruguai

Na esperança de mudar as regulamentações europeias

Para Valeria Csukasi, além do Princípio da Precaução não poder ser acionado para barrar a entrada de produtos que usam muito agrotóxico, pode se criar precedentes para aumentar o volume de resíduos de agrotóxicos permitidos em determinados produtos.

“A partir do momento em que o acordo entra em vigor vamos ter um espaço de diálogo privilegiado entre o Mercosul e a União Europeia onde vamos poder colocar esses temas [sobre a regulamentação de agrotóxicos] na mesa,” diz Valeria Csukai. “O que estabelecemos [no acordo] é um diálogo específico sobre o que se chama Limite Máximo de Resíduos,” diz a diplomata.

Um estudo produzido pela pesquisadora Larissa Bombardi, diz que os produtos agrícolas brasileiros mais vendidos para a União Europeia (soja, café e cítricos) usam cerca de 20% a 30% de agrotóxicos que são proibidos na Europa.

Na União Europeia se utiliza um marcador conhecido como Limite Máximo de Resíduo para determinar se um produto pode ou não ser vendido nos mercados.

Se um alimento tiver uma quantidade de um determinado agrotóxico acima do limite permitido na Europa, ele não poderá entrar no mercado europeu. Porém, segundo o acordo, o Limite Máximo de Resíduo pode ser ajustado caso a caso, se o país exportador solicitar uma Tolerância de Importação.

Uma vez aprovado, o pedido de tolerância ajusta o Limite Máximo de Resíduo para aquele produto e libera a sua circulação no mercado. A diplomata Valeria Csukasi diz que a tendência é ver a quantidade desses ajustes crescer.

“A lista de Limites Máximos de Tolerância de Importação era uma lista pequena que cada vez mais cresce porque para cada produto e para cada substância estamos colocando limites diferentes para a produção e para a importação. Então naturalmente esta discussão se torna caso a caso,” diz.

A política do caso a caso preocupa cientistas na Europa, como Angeliki Lysimachou, Coordenadora de Ciência e Políticas Públicas da Bélgica na ONG PAN Europe, uma entidade sem fins lucrativos que busca diminuir o uso de agrotóxicos nos alimentos europeus.

“Se começarem a aplicar exceções caso a caso, essas exceções passam a ser mais difíceis de monitorar. Como resultado, um pesticida que antes era banido passa a ter um Limite Máximo de Resíduo considerado aceitável para aquele alimento”, explica Angeliki. “Por exemplo [o país exportador] pode dizer, bom, nós usamos esse agrotóxico que não é autorizado e a gente ainda detecta ele na comida, mas em quantidades muito pequenas. Portanto, queríamos pedir para aceitarem esse pedido de Tolerância de Importação. Eles então respondem que aceitam já que fizeram uma análise toxicológica e se descobriu que naquela quantidade o agrotóxico não impõe nenhum risco a saúde humana.”

Um estudo realizado por Angeliki revela que quase 80% das entradas de produtos brasileiros na União Europeia tinham algum resíduo de agrotóxicos e quase 10% tinham resíduos acima do limite permitido.

Angeliki avalia que o marcador de Limite Máximo de Resíduo não é o suficiente para vetar a entrada de substâncias tóxicas no mercado.

“Muitos agrotóxicos que são banidos na União Europeia ainda são permitidos em uma variedade de alimentos, desde que eles atendam à quantidade de resíduo permitida. Então essa ideia de que se um agrotóxico é banido ele não será detectado na comida, não funciona 100% assim. Tudo funciona caso a caso.”

Angeliki acredita que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia pode acabar afrouxando a regulamentação sobre os agrotóxicos na Europa. “Você tem a oportunidade de solicitar uma Tolerância de Importação. Isso é algo que acaba sendo negociado a nível político. Então você tem uma regulamentação, mas ela não é tão rígida porque afinal ela muitas vezes acaba sendo uma decisão política,” diz a pesquisadora. “O que eu vejo é que [esse acordo] pode acabar sendo uma forma de se vender mais agrotóxicos para o Brasil e de vocês aumentarem a importação para Europa e as tarifas serão reduzidas para ambos os lados,” conclui.

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Temor

Pesquisadores que conversaram com a Agência Pública e Repórter Brasil temem que modificar a quantidade de agrotóxicos permitidos nos alimentos caso a caso pode gerar novas exceções para que mais substâncias químicas entrem no mercado europeu.

A pesquisadora e professora da UNB de Relações Internacionais Ana Flávia Barros-Platiau acredita na hipótese de que o acordo pode acabar impulsionando o mercado de agrotóxicos. “O meu medo, na verdade, é que a que a indústria agrícola brasileira ao invés de adotar padrões rigorosos para atender a exigência Europeia, compre mais pesticida agora porque vai ser facilitado e acabe indo por outro lado. Que é sinalização que temos desse governo que é lucro rápido e práticas agrícolas predatórias,” diz. Mas ela lembra que, mesmo tendo perdido os seus poderes de aplicação, uma menção ao Princípio da Precaução ainda consta no documento. “Ele ficou enfraquecido, sim [no acordo]. Ele não é mais um revólver. Agora ele é um canivete. Mas não significa que os Europeus não vão usar esse canivete contra a gente”.

Infografista:

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

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