Do lado de fora do pequeno posto de saúde azul e amarelo na cidade de Porto Feliz, a 100km de São Paulo, uma funcionária usando máscara cirúrgica recebe, sob uma tenda ao ar livre com fileiras de quatro cadeiras, os pacientes com suspeita de Covid-19. Desde a confirmação dos primeiros casos no município, a prefeitura tem orientado a população a buscar a “unidade sentinela” assim que sentir os primeiros sintomas relacionados ao vírus. Ali, os pacientes recebem um primeiro atendimento médico, realizam eletrocardiograma e exames de sangue e são encaminhados para a Santa Casa da cidade, onde fazem uma tomografia do pulmão.
No mesmo dia ou no seguinte, voltam ao posto, onde os resultados já estão disponíveis. Via de regra, um segundo médico entrega, então, uma receita já pré-impressa com sete medicamentos prescritos. O “coquetel”, que inclui ivermectina, azitromicina e hidroxicloroquina, além de plasil/dramin, paracetamol/dipirona, celecoxibe e enoxaparina, também é entregue ali mesmo. Tudo isso pode levar apenas algumas horas, antes de qualquer resultado de teste para a Covid-19.
Foi exatamente o que aconteceu com Beth*, uma funcionária pública da prefeitura que falou com a reportagem, mas preferiu não se identificar por medo de represálias. Em julho, ela teve diarreia, indisposição e sintomas de gripe logo após tomar uma vacina. Resolveu buscar a “unidade sentinela”. Apesar de não ter nenhum comprometimento no pulmão – e de suspeitar sobre a real eficácia dos medicamentos –, saiu de lá com o “coquetel” e tomou os remédios. “Embora eu não tenha sentido muita fé no que eles estavam dizendo, eram três autoridades médicas dizendo para tomar. Como o teste ia demorar pra sair, acabei tomando”, ela conta. O teste sorológico, que ela fez somente dias após ter terminado o tratamento, deu negativo. “Eu acho que não é muito responsável, apesar de eles fazerem o eletrocardiograma, a tomografia. Acho que existem outras medidas que poderiam ser melhor enfatizadas do que já distribuir e divulgar o kit”, afirma.
Nenhum dos medicamentos que compõem o “coquetel” tem comprovação científica de eficácia ou chancela da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Carro-chefe” do kit, a hidroxicloroquina se mostrou ineficaz em todas as fases da doença, de acordo com estudos com o mais alto nível de evidências clínicas. Além de sintomas como dor abdominal, diarreia e vômitos, a utilização do medicamento também tem confusão mental e arritmia como possíveis efeitos colaterais. Em informe de 17 de julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) afirmou ser urgente e necessário que sua utilização “seja abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19”.
Beth nunca teve Covid-19, mas pelo menos 2.045 pessoas já tiveram a doença no município de 53 mil habitantes, segundo o boletim divulgado pela prefeitura em 8 de outubro. O número apresentado pela administração local é bem diferente do que consta na plataforma do Ministério da Saúde, que fala em 1.185 casos. Quando se considera apenas as 52 cidades com população entre 40 e 60 mil habitantes em São Paulo — são 645, ao todo —, Porto Feliz é a 15ª com maior incidência de Covid, segundo os dados divulgados pelo governo federal. Com 13 óbitos, é a 45ª com mais mortes por 100 mil habitantes nesta faixa populacional em SP.
A cidade ficou famosa no Brasil inteiro graças ao empenho de seu prefeito, Doutor Cássio Prado (PTB), que é médico cirurgião e intensivista e abraçou a hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos. A aposta foi feita no final de março, quando o Ministério da Saúde só autorizava a cloroquina para casos graves da doença. A recomendação da pasta para casos leves de Covid-19 ocorreu só em 20 de maio.
Atuando como médico desde o final dos anos 1980, Cássio Prado iniciou na vida pública em 2001, quando foi secretário de saúde do município na gestão de Erval Steiner (PL). Em 2016, o médico se filiou ao PTB, sendo eleito prefeito em ampla chapa, composta por partidos como PSB, PCdoB e Rede, além de DEM e PR, entre outros. Com a eleição de Capitão Derrite (PP-SP), nascido na região, como deputado federal em 2018, o prefeito de Porto Feliz iniciou aproximação com o governo federal. Em 2020, ele tenta a reeleição, em chapa que inclui o PP de Derrite e o PSL, ex-partido de Jair Bolsonaro.
Graças à implementação pioneira do “protocolo de tratamento precoce”, o prefeito-médico deu entrevista para o canal da jornalista Leda Nagle, popular entre bolsonaristas, e viu a cidade ser tema de reportagens da TV Cultura e da Veja. Antes disso, Prado também falou com veículos de alcance local, como a TVI, de Itatiba (SP), e as afiliadas do SBT em Sorocaba e no Piauí. Nas entrevistas, o mandatário destacou o baixo custo do “kit”, que à época estava em R$ 40, e afirmou que o protocolo aplicado no município “evitava a replicação viral” e impedia a evolução da doença para formas mais graves.
O prefeito tornou-se um dos porta-vozes do movimento “Médicos Contra a Covid-19”, grupo que afirma reunir 10 mil médicos ao redor do país e tem como principal bandeira a utilização da hidroxicloroquina. Além disso, Prado também foi convidado a participar de reunião do Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19 (Giac), órgão da Procuradoria-Geral da República.
A aposta no coquetel de medicamentos funcionou para alavancar a popularidade do político, que busca a reeleição. “É uma louvação mesmo. Se a gente entra com qualquer contestação nas redes sociais, há um linchamento. A população está refém de um ‘saber-poder’, porque de fato ele entende da área dele, a gente não está contestando isso. A gente está contestando um protocolo de enfrentamento do vírus que está sendo negado no mundo inteiro”, afirma Vera*, uma assistente social do município que também preferiu não se identificar.
Para Fábio Corvo, candidato a vereador na cidade pelo PT, a população “comprou” a defesa da cloroquina feita pelo prefeito, que já tinha a popularidade alta. “Eu não tenho dados, mas a percepção é que a galera tem [comprado a ideia]. Pelo fato dele ser médico, se fosse outro acho que não teria colado. Sempre que a gente vai levantar o debate é isso: ‘Você é formado em quê? O cara é formado em medicina, você quer saber mais que o cara?’”, relata o político de oposição.
Segundo Prado afirmou em live realizada no final de junho, a cidade havia distribuído perto de 1500 “kits” até então, e nenhum dos tratados precocemente havia evoluído para entubamento ou óbito. De acordo com o prefeito, as três mortes que o município contabilizava no final de junho eram de pacientes que não haviam utilizado o tratamento. “Infelizmente foi politizado esse tratamento, colocando em riscos os munícipes. Isso nós não fizemos em Porto Feliz, nós fomos um dos primeiros a utilizar esse kit”, disse ele, ao participar da live “Tratamento Precoce Salva Vidas”, mediada pelo jornalista Alexandre Garcia, ferrenho defensor de Jair Bolsonaro. O vídeo, publicado no final de junho, foi apagado em setembro pelo YouTube por violar as diretrizes da plataforma.
A reportagem da Agência Pública questionou à prefeitura de Porto Feliz como funciona o protocolo que inclui prescrição de hidroxicloroquina e ivermectina à população. Em nota, a prefeitura não respondeu a nenhuma das indagações e se apressou em dizer que “não há distribuição de kits no município” – apesar da palavra “kit” não ter sido utilizada nas perguntas. Além disso, a nota afirma que “o paciente é avaliado através da consulta médica, na qual é realizado exame físico, história clínica, exames laboratoriais, eletrocardiografia e tomografia. Só então é decidido pelo médico assistente se há ou não indicação com segurança do uso das medicações que compõe o Protocolo de Tratamento Precoce”. (Leia a resposta completa aqui).
Pioneira na distribuição do “kit”
O “não kit” de Porto Feliz começou a ser adotado desde que os primeiros casos apareceram no município, no final de março. Desde então, os próprios médicos locais usam o termo “kit” para descrevê-lo, conforme apurou a reportagem.
Por ser uma utilização off-label — fora dos usos previstos nas bulas —, a prescrição da hidroxicloroquina e demais medicamentos prevê dois critérios básicos, segundo parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM): o médico deve ter autonomia para escolher, e o paciente deve consentir de maneira livre e esclarecida.
Na prática, o cumprimento dos dois pontos é frágil em Porto Feliz.
“Há um constrangimento, porque há uma construção de linguagem de que é pra tomar, apesar das pessoas terem que assinar um documento”, relata a assistente social Vera. “Quando você pergunta no atendimento [da assistência social] se ela leu, se ela sabe o que assinou, se foi orientada, é assustador o alto número de pessoas que se sentem forçadas a tomar, que não entendem direito o que estão tomando, tampouco o que está escrito no documento”, contou à reportagem.
“Pedem para assinar [o termo], de que não é cientificamente comprovado, só que não dá nem tempo de ler. Eu perguntei se eles iam me dar uma cópia, mas eles acabaram não me dando”, corrobora Beth.
O discurso de que as mortes ocorreram somente com aqueles que não utilizaram o protocolo municipal continuou ocorrendo com o crescimento do número de óbitos. “A gente vê que essa informação também acaba sendo usada para por medo. ‘Se você não tomar, vai acontecer que nem tal pessoa’”, diz.
Em relação aos médicos, o cenário não é muito diferente.
A prefeitura chegou a orientar os seus médicos a receitar os remédios. Em um trecho de protocolo de julho, obtido pela reportagem, há “nota aos médicos” em que a pressão é explicitada.
Em um grupo de WhatsApp de plantonistas da Santa Casa de Porto Feliz, uma mensagem encaminhada com trechos em negrito dá orientações incisivas sobre o protocolo de tratamento para Covid-19 adotado na cidade: “todo paciente com suspeita de Covid deve sair com hidroxicloroquina exceto se tiver contraindicação (…) Por favor, deem hidroxicloroquina para todos com suspeita de Covid. Há vários estudos que mostram redução de até 58% na mortalidade se dado no início dos sintomas”, diz o texto enviado pelo médico Marcos Lourencette Filho, sem citar em quais estudos se baseia. A reportagem não conseguiu contato com o profissional, e o hospital se recusou a informar se ele ocupa algum cargo de chefia na instituição. O print da mensagem foi enviado à Agência Pública por um integrante do grupo, através do formulário de denúncias da Investigação Participativa.
“A Santa Casa não está mais sob intervenção da prefeitura, mas ficou por muitos anos. Apesar de ter acabado a intervenção, a prefeitura tem muito comando lá, ainda mais o Dr. Cássio sendo médico. Ele foi plantonista lá por décadas, então tem grande influência entre o que a Santa Casa faz e a prefeitura decide”, conta Beth.
Efeitos
O “protocolo de tratamento precoce”, composto por remédios sem comprovação científica de eficácia contra a Covid-19, é co-assinado pelo prefeito de Porto Feliz. No texto introdutório da 10ª versão, de 12 de agosto, o documento cita liberação da utilização emergencial da cloroquina e da hidroxicloroquina pela agência norte-americana de vigilância sanitária, a FDA, dada no final de março. O texto não cita, entretanto, que a aprovação foi revogada em 15 de junho. A FDA afirmou ser “improvável que [os medicamentos] sejam eficazes no tratamento da Covid-19 para os usos autorizados nos EUA” e que “à luz dos eventos adversos cardíacos graves e outros efeitos colaterais graves, os benefícios conhecidos e potenciais (…) não superam mais os riscos conhecidos e potenciais para o uso autorizado”.
Na live com Alexandre Garcia no final de junho, “Doutor Cássio” também divulgou, orgulhoso, a realização de “profilaxia” na cidade – o termo é usado para descrever medidas que previnem ou atenuam uma doença. Apesar da ausência de comprovação científica, o prefeito atribuiu efeitos milagrosos à distribuição de ivermectina – remédio normalmente utilizado contra piolhos e lombrigas – para 4.500 pacientes: ninguém pegou Covid-19. Os profissionais da saúde receberam ainda receita de vitamina D, zinco, hidroxicloroquina, além de ivermectina. Segundo o mandatário, a aposta fez com que o município tivesse somente dois casos de Covid-19 nas equipes médicas.
A prefeitura foi além: distribuiu ivermectina de porta em porta em bairros periféricos, que teriam alta incidência da doença. “Foi uma abordagem ostensiva. Uma enfermeira acompanhada de um agente comunitário de saúde bateram e anunciaram que estavam ministrando a ivermectina para reforço do sistema imunológico contra a Covid-19. Disseram que tinha que tomar na frente deles, sem perguntar se estava em jejum ou até se tinha tomado outro medicamento. Não tomamos aqui em casa. [A enfermeira] disse que ia marcar que tínhamos recusado a medicação”, relatou uma moradora à reportagem.
O estudo que embasou a utilização do medicamento, publicado por cientistas australianos, demonstrou somente que a droga é capaz de inibir a replicação do coronavírus in vitro – ou seja, em células isoladas em laboratórios. Além disso, a dosagem usada na pesquisa ultrapassa em 100 vezes a dose normal de um comprido. Apesar de o remédio ser usualmente seguro, o uso indiscriminado pode trazer riscos, e o paciente pode apresentar efeitos colaterais como náuseas, diarreia e dor abdominal.
A Pública tentou diversas vezes entrevistar algum representante da prefeitura ou da Secretaria de Saúde municipal, mas o governo local não disponibilizou nenhum porta-voz.