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Segundo análises da PF obtidas pela Agência Pública, o foco da área de inteligência são milícias e grupos bolsonaristas radicais, de perfil paramilitar

Reportagem
3 de setembro de 2021
15:06
Este artigo tem mais de 2 ano

O conflito institucional fomentado pelo presidente Jair Bolsonaro trouxe à superfície uma novidade ofuscada pela polarização política: apesar das sucessivas tentativas de interferência, a Polícia Federal consolidou a independência, com a chancela judicial, para tocar investigações e operações contra extremistas de direita que querem forçar medidas de exceção contra o regime democrático a partir de atos programados junto com as comemorações da Independência. 

As análises de inteligência da PF apontam que Brasília e São Paulo serão palcos de grandes manifestações políticas, com riscos de distúrbios pontuais que podem evoluir nos dias pós-feriado, para novas agressões ao Supremo Tribunal Federal (STF) e transformação da retórica beligerante numa escalada de violência.  

O cenário vem sendo acompanhado pelo Centro de Inteligência do Exército (Ciex), pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e, em especial, pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal, que, como polícia judiciária, terá o papel mais importante na contenção de eventuais excessos. As análises da PF, às quais a Agência Pública teve acesso, traçam um cenário radicalizado e imprevisível, com uma linha tênue separando grupos de direita e esquerda, onde o risco maior estaria num eventual encontro entre manifestantes nas ruas no feriado de 7 de setembro. 

A PF acompanha com discrição os movimentos e, caso os riscos de confronto aumentem, avalia a possibilidade de adotar medidas preventivas. Entre elas, a solicitação de bloqueio de rodovias e pedidos de prisões temporárias de dirigentes de entidades ou até parlamentares que eventualmente sejam flagrados financiando ou fazendo apologia a atos de violência contra STF e Congresso, alvos dos bolsonaristas. 

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal - STF
Manifestações no 7 de setembro chamam atenção para novas agressões ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelos apoiadores do presidente

A área de inteligência da PF monitora dezenas de líderes e entidades de classe que se articulam pelas redes sociais, a maioria ligada a caminhoneiros, produtores rurais, evangélicos, policiais militares e civis. O foco, no entanto, são milícias e grupos bolsonaristas radicais, de perfil paramilitar, como o “300 do Brasil” cujos integrantes, acampados na Esplanada do Ministério em Brasília, em junho do ano passado lançaram fogos de artifícios contra o prédio do STF, numa provocação que pode ser repetida agora. Embora esteja sendo investigado e sua líder, Sara Winter, tenha sido presa à época, os militantes são considerados extremistas sensíveis aos discursos de ódio contra as instituições, estimulados pelo presidente e seus apoiadores mais próximos. A PF investiga ainda suspeitas de que as mobilizações para 7 de setembro estejam sendo financiadas por empresários e políticos aliados ao governo.

Embora vinculada administrativamente ao governo através do Ministério da Justiça, as investigações da PF estão sendo controladas exclusivamente pelo STF, que não permite interferências e tem dado aos policiais todas as garantias para agir livremente ou pedir as providências judiciais adequadas a cada circunstância. Um exemplo disso foram os pedidos de prisão feitos pela PF contra apoiadores ou políticos ligados ao presidente, como nos casos do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e do presidente do PTB, Roberto Jefferson. O núcleo que cuida da inteligência e operações se reporta exclusivamente aos ministros do STF, especialmente a Alexandre de Moraes, responsável pelos principais inquéritos que cercam o clã Bolsonaro.

Ao mandar prender lideranças de direita que tinham canal direto com Bolsonaro, o STF se orientou por investigações da PF e avisou que mandato parlamentar ou a proximidade com o presidente não é salvo-conduto para ações à margem da lei ou que agridam o regime democrático. No relatório em que embasou o pedido de prisão de Roberto Jefferson, a PF alegou que que ele não só passou dos limites ao pregar invasões ao STF e à CPI da Covid, como vinha incitando seguidores com sucessivas declarações que, segundo escreveu um delegado, “podem culminar na efetiva execução de atos de violência”. Com a proximidade do 7 de setembro, o STF negou os pedidos de libertação de Jefferson e de conversão da preventiva para prisão domiciliar, um indício de que medidas semelhantes estão no radar das autoridades.

As investigações miram também os filhos de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ), o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), aos quais são ligados os militantes de direita que já passaram pelas prisões e são monitorados. O cerco à família do presidente é um indicativo de que, embora tenha derrubado o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, e feito sucessivas trocas na direção e superintendências, para interferir nas investigações, o presidente perdeu o controle que pretendia exercer na Polícia Federal. Livre das pressões, o núcleo da PF que investiga os grupos antidemocráticos é agora um obstáculo às ideias autoritárias que o presidente pretende por em prática caso receba apoio significativo dos grupos de direita neste 7 de setembro.

“A PF está cumprindo seu papel. Faz investigação judicial com o crivo do Ministério Público Federal”, diz o presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Luiz Antônio Boudens. Segundo ele, o atual diretor geral Paulo Maiurino, o quarto nomeado no governo Bolsonaro, tem feito uma gestão com diálogo para evitar que a PF seja envolvida em questões ideológicas e partidárias. Uma fonte da PF disse à Agência Pública que embora a escolha de Maiurino, em abril deste ano, tenha sido do ministro da Justiça, Anderson Torres, que a submeteu ao presidente, o que mais pesou na indicação foi uma discreta articulação de bastidor exercida pela cúpula do STF, onde o delegado havia sido secretário de segurança. A manobra ajudou a blindar a PF de interferências em investigações que agora estão no calcanhar de personagens próximas ao presidente.

A independência da PF para atuar nas investigações judiciais tem incomodado o governo e aliados. Na terça-feira, o relator da reforma administrativa, deputado Arthur Maia (DEM-BA), num gesto surpreendente, decidiu incluir na proposta de reforma administrativa enviada pelo governo à Câmara, um dispositivo que proibiria o STF de escolher delegados que devem conduzir inquéritos abertos pela Corte, uma prática que ficou evidente na atuação do ministro Alexandre de Moraes. Nas investigações contra bolsonaristas, o ministro vetou a participação de agentes e delegados tidos como apoiadores do presidente e abriu caminho para a criação de um núcleo de inteligência e operações independente, formado por policiais sem vínculos ideológicos ou partidários. A alteração de Maia, conhecida na gíria legislativa como jabuti, por ser alheia à proposta original, cria foro privilegiado ao diretor da PF e dá a ele total controle na escolha de quem vai tocar as investigações. É provável que seja derrubada no plenário da Câmara porque interferiria na prerrogativa do judiciário e do Ministério Público Federal, que são responsáveis pelas ações penais decorrentes de inquéritos.

Entre policiais da ativa e representantes das entidades sindicais da PF ouvidos pela Pública não há dúvidas de que se conseguir um forte apoio nos atos programados no 7 de setembro em Brasília e São Paulo, o day after da Independência será marcado por intensa pressão de Bolsonaro na busca de apoio das Forças Armadas a medidas de exceção para limitar os poderes do STF e Congresso.

Bolsonaro chegou a declarar durante evento em Minas Gerais que “nunca uma outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será tão importante quanto esse próximo 7 de setembro”

Por esse raciocínio, Bolsonaro pode contar com corporações estaduais simpatizantes, especialmente das PMs, mas não tem apoio de órgãos federais, o que justifica a insistência com que tenta arrastar os militares para seu sonho golpista. “Ele quer usar o 7 de setembro como demonstração de força para decretar alguma medida de exceção. Pode ser estado de sítio ou estado de defesa”, diz um integrante da Fenapef, que não quer se identificar. Segundo ele, a crise gerada por Bolsonaro é artificial e sem qualquer fato que justifique intervenção.

Militar da reserva do Exército, o cabo Marcelo Machado, presidente da Associação Nacional dos Militares do Brasil (ANMB), entidade com 50 mil filiados, acha que um eventual apoio de setores militares às ideias golpistas provocaria um racha sem precedentes nas Forças Armadas, puxado pelas baixas patentes, que representam mais de 95% de todo o contingente. “Quem apoia as sandices do Bolsonaro são as polícias e parte do Alto Comando militar. Ele perde cada vez mais o apoio das praças. Não vejo possibilidade de golpe, mas se houver, qualquer tentativa seria sufocada rapidinho. O que ele quer é gerar uma confusão, um caos que justifique uma ação militar. Mas isso não vai acontecer. Quem defende essas coisas são malucos, fanáticos, os devotos de Bolsonaro, um pessoal que não pensa”, diz Machado.

A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que representa 14.100 filiados, estima que, embora tenha perdido o apoio de metade dos policiais que votaram nele, uma parte significativa dos aposentados está se deslocando a Brasília para se manifestar a favor de Bolsonaro. Boudens acha que as redes sociais mostram um nível jamais visto de ataques e agressões, gerando um ambiente propício a conflitos e forte expectativa de medidas intervencionistas pelo governo. “O cenário atual é de risco. Pode haver violência. No momento seguinte ao 7 de setembro, o presidente deve tomar alguma atitude, mas não sabemos o que pode acontecer. Acho que há uma probabilidade de Bolsonaro obter algum apoio militar, mas não sei se o país está pronto para os abalos que estão por vir”, afirma o presidente da Fenapef.

Boudens avalia que a crise tornou o ambiente político do país suscetível à ação de grupos radicais que pressionam o governo a adotar medidas extremas. “Se Bolsonaro receber apoio forte nas manifestações e não tomar atitudes, ficará um vazio entre os radicais que apoiam intervenção. A oposição também vai se organizar”, diz ele, se referindo ao provável acirramento dos ânimos a partir do feriado.

Ao transformar as comemorações pela Independência numa espécie de “Dia D”, como se estivesse apostando no tudo ou nada numa guerra imaginária, o presidente selou o próprio destino, no qual, segundo sua própria avaliação, há espaço tanto para um desfecho trágico quanto festivo. “Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza que a primeira alternativa não existe”, disse Bolsonaro durante encontro com evangélicos, na semana passada, em Goiânia.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/ Agência Brasil

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