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Acusados por crimes diferentes na Justiça comum e na Militar, jovens ficaram presos por mais de 500 dias sem condenação

Reportagem
26 de março de 2020
20:27
Este artigo tem mais de 4 ano

“A gente fica nessa agonia, nessa aflição”, diz a mãe de um dos sete jovens detidos numa operação militar no Complexo da Penha, em 20 de agosto de 2018, durante a intervenção militar no Rio de Janeiro.

Em conversa com a Agência Pública, Fabiana*, uma cuidadora de idosos que pediu para não ter o seu nome revelado, explicou que o filho sofreu uma série de problemas de saúde desde que foi baleado, torturado, e depois detido pelo Exército. Até a tarde de hoje [26 de março], o que mais a preocupava era a possibilidade do filho adoecer de coronavírus, uma ameaça cada vez mais real em um sistema prisional superlotado e precário. Após mais de 500 dias, o jovem de 22 anos permanecia em Bangu em prisão preventiva, sem qualquer condenação.

“Meu filho tem uma sinusite crônica, o que pode piorar tudo. Já tomei tanto calmante, já sofri tanto”, diz ela. A sinusite piorara no ambiente insalubre da prisão “Aquele ambiente fechado com todo mundo fumando numa cela, ele ficou ruim”, diz. Há dez dias, desde que o governo do Rio suspendeu todas as visitas a presos por conta da epidemia de coronavírus, ela não conseguia mais cuidar da saúde do filho: além de remédios de sinusite, levava vitamina C, complexo B, fortificantes. “A gente sabe que numa cadeia tem muita tuberculose, então qualquer coisa a gente tem que manter eles com remédio”, diz.

Além de compartilhar da aflição de familiares de milhares de presos no Rio de Janeiro – o sistema tem 52 mil detentos e detentas quando a capacidade máxima é de 28 mil – a aflição dessa mãe era redobrada porque seu filho estava em uma espécie de limbo jurídico: ele e mais seis jovens foram acusados por crimes diferentes em duas justiças – a Estadual e a Militar – pelos eventos daquele domingo.

Em dezembro, os sete jovens foram inocentados pela Justiça Estadual das acusações de associação para tráfico de drogas, pela ausência de provas que individualizem as condutas – os jovens foram detidos após saírem de uma região de mata com as mãos para o alto e, depois de algemados, os soldados do Exército encontraram três pistolas e uma mochila com drogas. Porém, nenhum dos soldados afirma ter visto os acusados portando armas ou atirando.

Mas eles não puderam sair da prisão porque respondem também por crimes militares. O Ministério Público Militar acusa cada um deles de tentativa de homicídio de dez militares do Exército, crime cuja pena pode chegar a 80 anos de prisão. Embora uma pessoa não possa responder pelo mesmo crime em duas cortes criminais diferentes, o processo na Justiça Militar permanece porque os crimes imputados aos jovens são diversos.

A prisão deles foi alvo de uma disputa jurídica também incomum. Inicialmente a juíza Marilena da Silva Bittencourt, da 4ª Auditoria do Fórum de Justiça Militar do Rio, havia decidido não acatar a denúncia por afirmar que não havia “indícios seguros de que foram os denunciados a praticar o fato”. Porém, o Ministério Público Militar recorreu e, em maio de 2019, o Superior Tribunal Militar acatou a denúncia e decretou a prisão dos réus – que já estavam presos em Bangu desde o ano anterior.

Desta maneira, mesmo quando foram inocentados na justiça civil, os réus continuaram presos. O Julgamento militar, que deveria acontecer no dia 19 de março, foi postergado até 2 de junho, por conta da crise do coronavírus.

Finalmente, na tarde desta quinta-feira, 26 de março, a juíza Maria Helena Bittencourt relaxou a prisão provisória dos jovens. “É imperioso reconhecer o excesso de prazo caracterizador do alegado constrangimento ilegal”, escreveu. Para ela, “em nenhuma hipótese, a prisão cautelar pode revestir-se de pena antecipada”.

Eles agora respondem ao processo em liberdade.

A Defensoria da União havia pedido a libertação dos réus por causa da recomendação do Conselho Nacional de Justiça a respeito do coronavírus, que aconselha a revisão de prisões provisórias em crimes não violentos. “Embora a recomendação não se aplique ao caso em análise, uma vez que se cuida de crime, em tese, cometido com violência à pessoa (crime hediondo), a situação da Pandemia de COVID-19 traz ao caso mais um fator de prolongamento do prazo da instrução sobre o qual os réus não possuem qualquer ingerência ou responsabilidade”.

Feliz com a notícia, Fabiana chorava ao telefone: “Eu sinto que eu vou ter que levar o meu filho para um psicólogo, porque com esses traumas todos que ele teve, vou ter que fazer um tratamento dele”.

Grupo de mulheres se unem para acompanhar os processos

Tortura e aflição

Desde a prisão, um grupo de mães e esposas tem se organizado para se apoiarem mutuamente e acompanharem os processos dos filhos. Luciana da Fonseca Rodrigues é uma das mães que se trocam informações em um grupo de Whatsapp.

“Meu filho estava sentado na porta de casa na hora que o Exército entrou na comunidade para fazer operação. Como ele era dependente químico, ele correu e prenderam ele. Levaram ele para o alto do morro, dizendo que era traficante da localidade e levaram preso”, diz a mãe Felipe da Fonseca Rodrigues, de 29 anos. Segundo ela, o filho é usuário de crack.

Após serem detidos pelo Exército, os jovens foram levados para a Cidade da Polícia, no centro do Rio. Foi quando Luciana soube que o filho tinha sido torturado. “No dia seguinte, um advogado amigo da minha irmã, conseguiu achar ele na Cidade da Polícia. Aí o delegado tirou a foto dele todo machucado e mandou para o zap da minha irmã. O meu amigo lá da cidade da polícia falou pra mim que eles massacraram os meninos”.

Já Fabiana só soube das torturas praticadas contra seu filho apenas quando conseguiu encontrá-lo, cerca de um mês depois da prisão. “Ele se entregou, como todo mundo se entregou naquele momento. Nisso começou as torturas no morro mesmo, bateram, mijaram no rosto dele – isso eu soube quando comecei a visitar ele na cadeia”, diz ela. O filho chegou a ser baleado com um tiro de fuzil, do lado direito do corpo, abaixo do intestino. Estava sangrando e com um ferimento que, segundo relatou à mãe, era tão largo quanto seu punho fechado.

Luciana da Fonseca Rodrigues integra o grupo de mães. Seu filho foi detido pelo Exército

“Deram chute no nariz dele, mesmo ele baleado. Pegaram ele, mais um outro menino, e mais um morto e botaram dentro lá da viatura do Exército. Ele diz pra mim que ficaram andando com eles, e dentro da viatura um rapaz do Exército jogava água neles, jogava spray de pimenta. E o morto em cima das costas dele, com o sangue do morto caindo em cima do corpo dele”.

O filho foi levado ao hospital Getúlio Vargas, onde recebeu os primeiros cuidados – aí ela apenas conseguiu ver seu filho, mas logo os soldados do Exército os levaram para a Vila Militar. “Falaram que iam fazer exame de corpo de delito. Só que não fizeram. Levaram eles pra Marechal Deodoro, pra dentro do quartel onde foi que começaram as torturas”.

“Meu filho estava sentado na porta de casa na hora que o Exército entrou na comunidade para fazer operação”, afirma a mãe de Felipe

A sessão de tortura foi revelada por uma reportagem de Rafael Soares, do Jornal Extra. Os relatos aos quais o jornalista teve acesso demonstram que houve, além de espancamentos, a utilização de técnicas de tortura dentro de uma “sala vermelha” no quartel que fica na Vila Militar na zona norte do Rio. Por exemplo, perguntado sobre a atuação de traficantes do Complexo da Penha, “ao responder que não sabia, apanhava com madeiradas na nuca e chicotadas com fio elétrico nas costas”. Outro detido relatou ter sido “ameaçado de ser sufocado com um saco plástico” durante a sessão de tortura” e que “chegaram a colocar um preservativo num cabo de vassoura para assustá-lo”. As lesões foram comprovadas por um exame médico feito durante audiência de custódia.

As denúncias de tortura foram investigadas por um IPM [Inquérito Policial Militar] liderado pelo próprio Exército, que decidiu que não há provas do crime. Mas, após a publicação do jornal Extra, o Ministério Público Militar segue investigando o caso.

Fabiana revolta-se com o caso porque, segundo ela, o filho trabalha desde os 16 anos. Quando foi preso, era entregador do Ifood. “Meu filho tem 22 anos, ele sempre trabalhou com carteira assinada. Infelizmente ele pegou o vício de maconha”, diz.

A primeira visita que ela fez ao filho em Bangu foi um choque. “Ele tava muito magrinho, e a gente não podia nem ver o ferimento dele, porque é proibido. Mas ele falava, ‘mãe, traz todas as medicações que eu vou falar pra a senhora pra eu poder ir me cuidando aqui dentro porque não tem todas as medicações que eu preciso’”. Entre os remédios que faltavam estavam soro, antibióticos e anti-inflamatórios.

Claudia*, de 34 anos, ex-vendedora de loja de roupas, conheceu as duas enquanto peregrinava nas duas justiças esperando a liberdade do marido, com quem tem um filho de 6 anos. “Praticamente nos tornamos uma família. Uma ajuda a outra. Uma chora de um lado, outra chora de outro, porque ninguém aguenta sozinha” diz.

Jovens foram detidos pelo Exército e torturados

Assim como elas, Claudia nunca tinha entrado em um presídio. E, assim como elas, só conseguiu ver o esposo quase dois meses depois da prisão. “Ele tinha um machucado perto da boca, a testa tava meio ralada, porque bateram nele, tacaram spray de pimenta, deram paulada. Até choque eles tomaram”, relembra. “Quando ele me contou eu só chorava”. Ela diz que o marido tinha ido para um baile de funk famoso no complexo da Penha, o Baile da Gaiola, que ela mesmo frequentava. “Ele foi curtir um baile funk num lugar, acabou sendo preso, tão jogando 10 tentativas de homicídio em cima dele. É inacreditável”.

Mesmo após a liberdade do filho, o horror do que viu em Bangu ainda permanece na memória de Fabiana. “Eu fiquei muito horrorizada quando entrei naquela cadeia, de ver a quantidade de jovens presos. Eu tinha na minha mente, uma ideia de que haveria uns homens mais velhos, uns bandidos, né? E quando você vê aquela cadeia, aquela quantidade de jovens, todos presos… É muito deprimente”.

Para a Defensoria Pública da União, o filho de Cláudia não deveria nem mesmo ter sido julgado pela Justiça Militar. “Sempre somos contrários ao julgamento de civis pela Justiça Militar que tem rito próprio e um natural entendimento mais próximo da visão e da vida militar, onde a hierarquia é a disciplina são valores fundamentais, algo distinto da vida civil”, explica o defensor Thales Treiger.

Thales afirma que tem confiança que os acusados serão ainda inocentados na Justiça Militar, assim como o foram na Justiça estadual “em função da fragilidade da prova da acusação”.

“Não há nos autos qualquer indicação de qualquer testemunha afirmando que estes mesmos jovens estavam portando qualquer material que tenha relação com o crime de tráfico de drogas ou da tentativa de homicídio. Ninguém, nem mesmo os militares, é assertivo a ponto de individualizar as condutas de cada um dos acusados. Eles foram presos por presunção”.

Fabiana, que tem entre seus clientes membros das Forças Armadas, prefere que seu nome não seja publicado porque isso pode afetar suas possibilidades de trabalho. “Existe preconceito em todos os lugares. Eu não conto nem pra minhas amigas de trabalho que meu filho é preso. As pessoas falam: seu filho não tem cara de bandido. E eu digo: meu filho não é bandido, ele é um usuário de drogas que foi pego lá no morro no lugar onde todo mundo vai pra usar drogas”.

Já Claudia*, que também pediu para não ser identificada ao contar o seu caso, explica que o seu motivo é bem diferente. “Eu tenho medo. Eu moro sozinha, em um beco. Tenho medo deles me fazerem alguma coisa. É tanto caso que você vê na televisão que você não sabe se o Estado te apoia ou se não te apoia”.

*Os nomes foram trocado a pedido das entrevistadas.

Colaborou Raphaela Ribeiro.

AF Rodrigues/Agência Pública
AF Rodrigues/Agência Pública
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